Folha de S. Paulo


Ataque a sinagoga em Jerusalém provoca medo de guerra religiosa

As manchas de sangue ainda não tinham sido completamente apagadas dos degraus que levam à sinagoga Kehillat Bnei Torah, na zona oeste de Jerusalém, na quarta-feira, onde no dia anterior quatro rabinos e um policial druso foram mortos por dois primos palestinos num ataque matinal.

Um buraco de bala era visível dentro da sinagoga. Quatro velas estavam acesas em memória dos quatro rabinos. Fiéis e políticos entravam e saíam.

No interior da sinagoga, David Herscowitz, que se mudou da Inglaterra para Israel na década de 1990 e é membro do grupo de vigilância do bairro, insistiu que a comunidade ultraortodoxa do bairro de Har Nof vai sair da tragédia fortalecida.

"As pessoas estão preocupadas e vão tomar precauções", ele disse. "Ninguém previa que isso pudesse acontecer aqui. Somos religiosos aqui. E acreditamos que Deus tem um plano. Por isso, você não vai ouvir pessoas aqui gritando por vingança ou discutindo se devemos falar em paz ou não falar em paz e lutar. Deixamos isso a cargo dos políticos."

Enquanto as pessoas como Herscowitz, que incluem muitas na sinagoga, reagiram à matança insistindo sobre sua fé como proteção contra a recente violência mortífera em Jerusalém, outras avisam que a escalada recente corre o risco de ser cada vez mais matizada por diferenças religiosas.

E o sentimento de medo está se difundindo. Na quarta-feira o papa Francisco expressou consternação diante do "aumento alarmante da tensão em Jerusalém" e apelou para os dois lados para tomarem as "decisões corajosas" necessárias para chegar à paz.

A Jordânia, responsável por cuidar dos locais santos muçulmanos em Jerusalém oriental, anunciou estar acompanhando "a situação séria" na cidade, condenando todos os atos de violência e pedindo "contenção e calma".

Em Israel, a ministra da Justiça, Tzipi Livni, manifestou o medo de que o conflito entre israelenses e palestinos esteja ganhando tons religiosos: "E uma guerra religiosa não pode ser resolvida".

Depois do ataque à sinagoga, o vice-ministro das Finanças, Mickey Levy, ex-comandante da polícia, avisou sobre o mesmo risco.

O chefe da agência de segurança interna de Israel, a Shin Bet, Yoram Cohen, também se manifestou. Na terça-feira ele disse a uma comissão parlamentar israelense que boa parte da tensão desde o verão se deve ao sentimento de ultraje ainda forte entre os palestinos pelo assassinato do adolescente Mohammed Abu Khdeir, além da ansiedade profunda pelo que é visto como o avanço judaico sobre o Nobre Santuário, conhecido pelos judeus como Monte do Templo.

A situação está agravando as relações já hostis entre o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, e o presidente palestino, Mahmoud Abbas. Netanyahu acusou Abbas de incitar a violência recente ao conclamar os palestinos a defender o local santo, enquanto Abbas acusou Netanyahu de acirrar os ânimos ao permitir visitas provocantes de membros do Knesset e de seu próprio partido, dentro de sua campanha para que os judeus tenham o direito de orar no local.

O tema foi retomado pela mídia israelense. Sob a manchete "onda de terror palestino ganha ares de guerra religiosa", Amos Harel, no "Haaretz", culpou os dois lados: o governo israelense por ter contribuído "para a ênfase sobre o aspecto religioso do conflito, ao demonstrar impotência diante dos esforços recentes de ativistas judeus de extrema-direita para mudar o status quo relativo à oração de judeus no Monte do Templo".

Quanto aos palestinos, ele afirmou que "a defesa da mesquita de Al-Aqsa (no lugar santo) é usada para desculpar os responsáveis por atos de terror recentes".

Ben Caspit, do "Ma'ariv", usou linguagem semelhante ao criticar a resposta de Netanyahu na terça-feira. "O verdadeiro perigo que Netanyahu não mencionou ontem é que a onda de terror se transforme em uma guerra religiosa verdadeira, algo que ainda não ocorreu aqui: eles matarão judeus numa sinagoga, judeus incendiarão mesquitas em suas cidades, e o próximo grande fato pode ser um ataque terrorista contra o Monte do Templo."

A verdade é que está ficando cada vez mais difícil ignorar o elemento religioso subjacente à violência.

Entrevistados pelo "Guardian", familiares dos homens que estão por trás de uma série de ataques palestinos recentes destacaram como os homens eram religiosos e a importância que a mesquita de Al-Aqsa tinha para eles.

Na quarta-feira, alguém fez uma pichação nos escombros do apartamento em Silwan (um bairro de Jerusalém oriental) onde vivia Abdelrahman al-Shaludi, 21, morto a tiros pela polícia depois de matar uma mulher e um bebê de três meses investindo contra eles com um carro.

Escrita na residência demolida algumas horas antes pelas forças israelenses, em represália pelo ataque, a mensagem diz: "Deus vai suplantar todos os arrogantes".

Sentado diante da casa, o imã da mesquita local, Moussa Odeh, ofereceu sua própria interpretação dos fatos recentes. "Cinco anos atrás, o conflito em Silwan era pela chegada dos colonos israelenses. Hoje o problema é Al-Aqsa. Al-Aqsa é nossa fé. É nossa essência. As pessoas estão dispostas a abrir mão de tudo por ela."

Por mais importante seja, a questão de Al-Aqsa virou a metáfora e a essência destilada de uma desconfiança mais ampla do lado palestino, que ganhou significado visceral crescente nos últimos meses.

Uma campanha de políticos israelenses de extrema-direita de mudar o status quo de um local santo na Cidade Velha foi acompanhada por visitas recentes que, até recentemente, o governo de Netanyahu não se dispunha ou não era capaz de controlar. Esse fato, por sua vez, levou a atritos, restrições e um fechamento controverso que contribuiu para um ciclo de tensão.

As garantias dadas por Netanyahu e ministros seniores de que Israel não pretende mudar o status quo que permite que judeus visitem o Monte do Templo, mas não orem ali, foram recebidas com descrédito.

Quando se conversa com palestinos em Jerusalém, desde o grão mufti de Al-Aqsa até Odeh e pessoas comuns, muitos insistem que, pelo contrário, acreditam que existe um plano israelense de dividir o Nobre Santuário e destituir os palestinos de seu patrimônio histórico.

Para pessoas como Odeh, que não acredita que a paz possa prevalecer, isso implica em um conflito inevitável que só vai se agravar, até que um dos lados seja vitorioso.

Tradução de CLARA ALLAIN


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