Folha de S. Paulo


Casa de brasileiros era refúgio capitalista em Berlim Oriental

RESUMO - Georgia Basto Alo, 40, morou 12 anos na Alemanha Oriental. Filha de funcionários do Itamaraty, estudou nas escolas do governo comunista em Berlim, cuja doutrina pregava o combate ao modelo capitalista. Na época, teve a família vigiada por espiões da polícia secreta local.

*

Frequentei o jardim de infância e a escola em Berlim Oriental, entre 1977 e 1989.

Os meus colegas alemães só podiam assistir aos canais de televisão das emissoras do governo da Alemanha comunista.

Vídeo: Veja curiosidades sobre o Muro de Berlim

Por ser da representação diplomática –no caso, do Brasil–, minha família tinha autorização para usar antena parabólica.

Minha casa então virou um refúgio para os amigos da escola que iam algumas vezes escondidos para lá assistir a desenhos americanos, filmes do mundo ocidental que não passavam do nosso lado. Elas aproveitavam também para comer doces, coisas que trazíamos de Berlim Ocidental.

Como estrangeiros, podíamos atravessar o muro a qualquer momento. Era só mostrar o passaporte na barreira, ao contrário dos alemães do leste.

Sérgio Lima/Folhapress
A brasileira Georgia Basto Alo, que passou a infância em Berlim Oriental, na Embaixada da Alemanha em Brasília
A brasileira Georgia Basto Alo, que passou a infância e parte da juventude em Berlim Oriental

Morávamos na Leipziger Strasse, uma das principais ruas da cidade. Na época, ela ficava a 10 minutos caminhando do muro.

Meu pai, de vez em quando, levava encomendas para os amigos alemães que não podiam cruzá-lo. Uma vez ele foi abordado pelas autoridades e recebeu um recado para parar com isso.

Eu costumava ir para Berlim Ocidental visitar amigos, ter aula particular de português, passear no shopping. Era um choque muito grande a diferença.

Muitas vezes meus colegas do lado oriental me acompanhavam até a fronteira e me assistiam atravessar tranquilamente o "Check-Point Charlie", ponto de fiscalização comandado pelo governo capitalista.

É uma imagem muito forte para mim. Me lembro do olhar triste e de lamento desses amigos por não poderem pisar na Alemanha Ocidental.

Existia mesmo essa grande vontade de conhecer o outro lado, mas também havia um certo medo, sobretudo porque eles aprendiam que o domínio do sistema capitalista era muito pior, causando desigualdades e desemprego.

MORAL E CÍVICA

Na escola, havia uma aula chamada "Staatsbuergerkunde", algo como a nossa "Educação Moral e Cívica".

Era ensinado como não se deixar influenciar e oprimir pelo capitalismo e como fortalecer o discurso comunista.

Aprendíamos que o capitalismo era o "lobo mau" e os russos salvaram a Alemanha Oriental.

Senti na pele a dificuldade de estabelecer amizades com colegas de classe, alguns deles, filhos de agentes da Stasi, a polícia secreta comunista.

Meus pais tinham amigos alemães e descobrimos somente depois da queda do muro, já de volta ao Brasil, que dois deles eram espiões. Eles haviam frequentado nossa casa.

Após a reunificação da Alemanha, um desses amigos enviou uma carta contando tudo e se desculpando. Nossos telefones eram grampeados e no prédio onde viviam os diplomatas havia um porteiro apenas para nos vigiar.

Lembro que fazíamos compras no mercado local chamado "Kaufhalle".

Podíamos comprar a quantidade que queríamos, enquanto os alemães tinham uma cota para consumo de leite, carne, entre outras coisas. Então, com frequência, nos reconheciam como estrangeiros já que comprávamos sem limite.

PACTO IDEOLÓGICO

Com meu olhar de criança, e depois adolescente, percebia a existência de muita união entre os alemães orientais, quase um pacto inabalável de fé em uma ideologia que acreditavam ser o caminho da libertação do capitalismo sem escrúpulos. É fato que não víamos muita desigualdade social.

Por outro lado, não havia toda a tecnologia que existia do outro lado, o desenvolvimento, e principalmente a liberdade, não só de ir e vir, mas de pensamento, de ideologia, do direito de ler o que quisesse.

Hoje sou funcionária da embaixada da Alemanha, em Brasília, por ser fluente no idioma e ter uma boa formação.

Interessante observar como, até hoje, a Alemanha luta para se reerguer de suas mazelas históricas, como a Segunda Guerra Mundial e o regime socialista em que viveu. Essas ainda são questões que permeiam a tentativa de mostrar uma Alemanha mais tolerante, mudada e moderna.


Endereço da página:

Links no texto: