Folha de S. Paulo


Turquia é fonte de recrutas para o Estado Islâmico

Tendo passado a maior parte de sua juventude como viciado em drogas vivendo em um dos bairros mais pobres da capital da Turquia, Can não achava que tivesse muito a perder quando foi contrabandeado para a Síria com 10 amigos de infância para se alistar no grupo de radical islâmico mais extremista do planeta.

Depois de 15 dias em um acampamento de treinamento na cidade de Raqqa, Síria, Can, 27, foi transferido a uma unidade de combate.

Ele disse ter morto dois homens a tiros e participado de uma execução pública. Foi só depois de enterrar um homem vivo que o informaram de que se havia tornado um integrante pleno do Estado Islâmico.

"Quando você está em combate lá, é como estar em transe", disse Can, que pediu que apenas seu nome do meio fosse citado no texto por medo de represálias.

"Todo mundo grita que 'Deus é mais', o que confere a força divina de matar o inimigo sem que o sangue ou as entranhas derramadas nos perturbem", ele disse.

Centenas de combatentes estrangeiros se uniram às fileiras do Estado Islâmico no califado proclamado pelo grupo, abarcando vastos territórios do Iraque e Síria; há voluntários vindos da Europa e dos Estados Unidos.

Mas uma das maiores fontes de recrutas é a vizinha Turquia, país membro da Organização para o Tratado do Atlântico Norte (Otan) no qual existe uma subcorrente de descontentamento islâmico.

Até mil turcos aderiram ao Estado Islâmico, de acordo com reportagens na imprensa da Turquia e funcionários do governo em Ancara.

Os recrutas citam o apelo ideológico do grupo aos jovens insatisfeitos, bem como o dinheiro de seus cofres repletos, usado para pagar recrutas.

Os Estados Unidos vêm aplicando forte pressão sobre o presidente turco Recep Tayyip Erdogan por melhor policiamento dos 910 quilômetros de fronteira entre a Turquia e a Síria.

Washington deseja que a Turquia bloqueie o fluxo de voluntários e impeça o Estado Islâmico de exportar o petróleo que produz nos territórios sob seu controle na Síria e Iraque.

Erdogan resistiu a apelos por medidas agressivas contra o grupo, mencionando o destino dos 49 reféns turcos que o Estado Islâmico detém desde que seus combatentes tomaram Mosul, a segunda maior cidade do Iraque, em junho.

A Turquia se recusou a assinar um comunicado, terça-feira, expressando o compromisso de alguns países da região de tomar novas medidas "apropriadas" para combater o Estado Islâmico, o que frustrou representantes dos Estados Unidos.

Há anos, a Turquia vem se esforçando para estabelecer um exemplo de democracia islâmica no Oriente Médio por meio de sua receita de "zero problema" com os países vizinhos, o princípio que norteia a política de Ahmet Davutoglu, que recentemente se tornou primeiro-ministro da Turquia depois de servir anos como ministro do Exterior.

Mas erros de cálculo deixaram o país isolado e vulnerável, em uma região agora convulsionada pela guerra.

Hacibayram, um bairro decadente no coração da região turística de Ancara, se transformou em estação de recrutamento para o Estado Islâmico, nos últimos 12 meses.

Testemunhas locais dizem que até 100 moradores do bairro se transferiram à Síria para combater pelo grupo.

"Tudo começou quando um desconhecido com uma barba longa e mal cuidada começou a circular pelo bairro", recorda Arif Akbas, subprefeito eleito do bairro há 30 anos e encarregado dos negócios locais. "E logo descobrimos que todos os drogados locais começaram a frequentar a mesquita".

Um dos primeiros homens do bairro a aderir ao Estado Islâmico foi Osguzhan Gozlemcioglu, conhecido de seus colegas no movimento como Muhammad Salef.

Em três anos, ele ascendeu ao status de comandante regional em Raqqa, e os moradores locais dizem que ele frequentemente visita Ancara, e sempre garante levar recrutas de volta em sua companhia.

Brincando nos escombros de um edifício demolido, em um recente dia de verão em Ancara, dois meninos pequenos encenavam uma luta com armas de brinquedo.

Quando uma menina síria pequena passou por eles, os meninos a agarraram, a jogaram no chão e apontaram seus fuzis de brinquedo para a cabeça da menina. "Vou te matar, puta", um dos meninos gritou antes de imitar o ruído de uma metralhadora.

O outro menino não demorou a perder o interesse, e se foi. "Brinquedos são muito chatos", ele disse. "Tenho uma arma de verdade lá em casa".

O pai do menino, dono de um mercado na região, disse apoiar plenamente a visão do Estado Islâmico quanto ao governo islâmico, e que esperava mandar o menino e seus demais filhos a Raqqa quando eles crescessem.

"A forma diluída de islamismo praticada na Turquia é um insulto à religião", disse ele, fornecendo apenas suas iniciais, T. C., para proteger sua identidade.

"No Estado Islâmico, você leva uma vida de disciplina tal como Deus ditou, e será recompensado por ela. As crianças lá têm parques e piscinas. Aqui, meus filhos brincam na terra".

Mas quando Can voltou de Raqqa depois de três meses, com dois dos 10 amigos que o acompanharam originalmente, ele estava profundamente arrependido.

O Estado Islâmico "é brutal", disse. "Interpretam o Corão para ganho próprio. Deus jamais ordenou que muçulmanos matem muçulmanos".

Ainda assim, ele disse que muita gente se deixava atrair pelo grupo por motivos financeiros, e que ele atrai os jovens carentes nas regiões menos prósperas da Turquia.

"Quando você combate, eles oferecem US$ 150 por dia. E tudo mais é grátis", disse ele. "Mesmo os comerciantes fornecem produtos de graça".

Em uma tarde recente em Ancara, Erdogan e Davutoglu foram orar na histórica mesquita de Haci Bayram Veji, a apenas 100 metros de uma mesquita clandestina usada por uma seita salafista radical conhecida por recrutar combatentes para o Estado Islâmico.

Quando notícias da visita chegaram ao bairro, diversos moradores correram colina abaixo para aproveitar a oportunidade de discutir a questão.

Ao mesmo tempo, um menino de 10 anos estava na loja de sua família, rindo com a multidão e procurando oportunidade de ver os dois líderes. Ele havia acabado de ouvir uma longa arenga de seu pai celebrando a recente decapitação do jornalista norte-americano James Foley pelo Estado Islâmico.

"Ele era um agente e merecia morrer", disse o homem ao filho, com uma cara meio ranzinza, meio brincalhona, por trás da barba espessa.

Ao que o menino respondeu: "Jornalistas, infiéis deste país. Mataremos todos eles".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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