Folha de S. Paulo


Promessa de Obama, fechamento de Guantánamo demora a sair do papel

Um avião de transporte militar aterrissou na base naval americana em Guantánamo numa tarde de agosto. Veio para levar seis detentos de baixo risco para vidas novas no Uruguai, depois de 12 anos encarcerados em Guantánamo.

Dias antes, o vice-presidente dos EUA, Joseph Biden, tinha telefonado ao presidente do Uruguai, José Mujica, fazendo pressão para que os homens fossem transferidos.

Mujica tinha oferecido recebê-los em janeiro, mas quando os EUA estavam prontos para fazer a transferência, o uruguaio teve medo do risco político que ela implicaria, devido às eleições de final de outubro em seu país, segundo funcionários da administração Obama. Depois de quatro dias de negociações, o Boeing C-17 foi embora sem os passageiros que transportaria.

Embora o presidente Obama tenha prometido no ano passado retomar seus esforços para fechar a prisão de Guantánamo, sua administração conseguiu libertar apenas um detento de baixo risco este ano, deixando 79 cuja transferência para outros países já foi aprovada.

E ela não conseguiu persuadir o Congresso a revogar a proibição de levar os 70 presos considerados de alto risco, para uma prisão nos EUA.

"[A prisão] está longe de fechada", disse o John F. Kelly, líder do Comando Sul dos EUA, responsável pela Força-Tarefa Guantánamo.

"Obviamente o presidente está se esforçando, ele tem gente fazendo o possível para que vários países aceitem os detentos, mas em última instância será preciso o Congresso agir" para revogar a proibição de transferência.

Mais de 12 anos depois de a administração Bush ter mandado os primeiros prisioneiros para Guantánamo, há dúvidas crescentes quanto às chances de Obama conseguir fechar a prisão antes de deixar a Presidência.

Há uma divisão entre funcionários do Departamento de Estado, que parecem ansiosos por alcançar a meta de Obama, e do Pentágono, que parecem hesitar em libertar detentos.

As pressões legais se acumulam, também, à medida que a guerra no Afeganistão está perto de seu fim oficial e que o Judiciário fica mais incomodado com a prática dos militares de alimentar à força os detentos em greve de fome.

E autoridades militares estão tomando as medidas que dizem necessárias para manter Guantánamo aberta-mas que podem, também, ajudar a institucionalizar a prisão. Partes da cadeia, criada para manter detentos apenas temporariamente, estão sofrendo desgaste.

Obama argumenta que a prisão de Guantánamo deveria ser fechada devido a seus altos custos -quase US$ 3 milhões (R$ 6,9 milhões) por ano por detento- e porque ela coloca a segurança nacional em risco, tendo se tornado um símbolo de maus-tratos de detentos.

Extremistas do Estado Islâmico que decapitaram dois jornalistas americanos na Síria no mês passado exploraram esses sentimentos, forçando suas vítimas a usar roupas de cor laranja, como as usadas por alguns detentos.

O governo Obama insiste que as transferências ao Uruguai ainda se realizarão após a eleição no país, e, segundo autoridades informadas sobre o processo, até 14 outros presos podem ser libertados de Guantánamo até o final do ano.

"O período até o final deste ano é crítico, porque o caminho que vai conduzir ao fechamento da prisão requer avanços substanciais na transferência de prisioneiros para fora de Guantánamo", disse Cliff Sloan, enviado do Departamento de Estado para as transferências de detentos.

Nesta paisagem árida de sol, mata rasteira e pó, as instalações prisionais vêm aumentando ao mesmo tempo em que a população de detentos encolhe. Em 2003, cerca de 680 prisioneiros lotavam Camp Delta. Hoje os 149 remanescentes vivem em instalações mais novas, e Camp Delta está vazio.

Dentro da clínica principal, o oficial médico sênior recentemente comandou a criação de uma "Unidade de Tratamento de Urgência para Detentos", com leitos, respiradores, monitores cardíacos, oxigênio e outros equipamentos. O médico disse que cerca de 25 detentos já apresentam condições que ele está monitorando, como diabetes e hipertensão.

Ele prevê que surgirão outros problemas nos próximos anos, como câncer e doenças cardíacas, como acontece com qualquer população que envelhece. A idade média dos detentos é 41 anos. Nos campos Cinco e Seis, os detentos são abrigados segundo seu comportamento. Aqueles que obedecem as normas da prisão podem viver coletivamente.

Até 20 deles vivem em cada bloco, onde as portas das celas ficam abertas durante a maior parte do dia, de modo que os presos podem se encontrar em volta de uma mesa metálica ou no pátio, ao ar livre. Esses detentos têm contato mínimo com os guardas, mas são vigiados por câmeras de segurança, através de janelas de vidro.

Alguns blocos de celas são reservados aos detentos que querem assistir à televisão ocidental, enquanto outros são para os que querem evitar ver mulheres que não estejam cobertas. Um grupo menor de detentos que descumprem as normas tem menos opções para passar o tempo. Alguns deles são agressivos.

Outros protestam pacificamente, participando de greves de fome ou recusando-se a obedecer a ordens. Esses homens são abrigados em celas individuais no campo Cinco, onde soldados olham pelas janelas a cada poucos minutos.

CONSPIRADORES A SOLDADOS

Escondido nos morros a um quilômetro do litoral está o Campo Sete, onde estão suspeitos de terrorismo de alto risco, como Khalid Shaikh Mohammed, o autoproclamado arquiteto do 11 de Setembro.

Em 2013, o Comando Sul, ou Southcom, pediu verba de US$ 200 milhões (R$ 460 milhões) para reconstruir a estrutura. O Pentágono rejeitou a solicitação, mas o Congresso pode aprovar US$ 23 milhões (R$ 53 milhões) para a substituição da cozinha e a transferência da clínica para perto dos campos Cinco e Seis.

"Somos obrigados a pelo menos traçar uma previsão, para que estejamos preparados se esta instalação penal continuar aberta dentro de dois anos, de 12 anos ou de 22 anos, para que possamos continuar a cumprir a missão", disse o almirante Kyle Cozad, que comanda a força-tarefa da prisão.

Os prisioneiros variam muito. Alguns, como Khalid Shaikh Mohammed, realmente são líderes operacionais da Al Qaeda vinculados a mortes de americanos. Mohammed e 14 outros prisioneiros "de alto valor" -enviados a Guantánamo em 2006 de prisões da CIA "em sítios negros", onde alguns deles foram torturados- estão presos no Campo Sete.

Pouco é sabido sobre o Campo Sete. Mas um relatório militar de 2009 o descreveu: as paredes das celas foram projetadas para impedir que os detentos conversem com seus vizinhos, e eles são proibidos de fazer telefonemas.

Segundo um relatório de 2010 de um grupo de revisão interagências, metade dos detidos em Guantánamo provavelmente não passavam de soldados que ajudavam o Taleban a combater as milícias do norte do Afeganistão.

O relatório disse que eles "não exerciam liderança importante ou papel especializado" e que "normalmente receberam treinamento limitado no uso de armas".

Esse grupo não violou nenhuma lei, e seus membros compõem a maior parte dos 79 prisioneiros recomendados para transferência, se for possível satisfazer as condições de segurança. Mas a maioria vem de países instáveis demais para satisfazer as restrições impostas pelo Congresso.

Os americanos estão gastando US$443 milhões (R$ 1,02 bilhão) com a prisão em 2014, valor que inclui o custo das passagens aéreas de equipes que vão a Guantánamo para cada audiência da comissão.

De acordo com o Birô Carcerário, abrigar um detento federal numa prisão de segurança máxima em solo americano custa muito menos -US$ 30.380 (R$ 69.874) em 2013-, embora esse valor não inclua custas judiciais.

TENTATIVAS DE TRANSFERÊNCIA

Pela lei americana, é o secretário da Defesa quem decide se é seguro permitir a saída de um detento. Chuck Hagel aprovou dez transferências de prisioneiros de baixo risco até dezembro e mais uma no início deste ano.

Em março, foram concluídos os trâmites para que o Uruguai recebesse seis detentos -quatro sírios, um tunisiano e um palestino, o maior grupo a sair desde 2009.

Nenhum detento foi transferido para a América do Sul até agora, e a notícia do acordo com o Uruguai inspirou discussões semelhantes com o Brasil, Chile e Colômbia, segundo relatos de mídia regionais.

Enquanto isso, foram completados em março os detalhes de acordos distintos propostos para a repatriação de quatro afegãos e um mauritano. Mas Hagel não concluiu os acordos pendentes.

Segundo funcionários informados sobre os trâmites, alguns assessores questionaram se os países que receberiam os transferidos teriam condições de cumprir a promessa de monitorá-los.

Dos 83 detentos transferidos no governo Obama, cinco participaram de ato terrorista ou insurgente depois de libertados, e dois outros são suspeitos de ter feito o mesmo, segundo o Escritório do Diretor de Inteligência Nacional.

Em maio a Casa Branca enviou a Hagel um memorando dizendo que ele deve aceitar um risco "acima de zero", porque a prisão aberta também oferece riscos. Mas Hagel disse que está levando o tempo que julga necessário. "Meu nome vai estar naquele documento", explicou.

Finalmente, no início de julho, Hagel informou o Congresso de que tinha aprovado o acordo com o Uruguai, dando início a um período de espera de 30 dias, mas o presidente Mujica adiou o pacto.

A administração americana não observou o período de espera quando, em maio, mandou cinco detentos de alto risco, membros do Taleban, para o Qatar em troca do sargento Bowe Bergdahl, o único prisioneiro de guerra americano feito no conflito no Afeganistão.

Hagel disse que o adiamento colocaria a vida do soldado em risco. Deputados republicanos retaliaram, votando a proibição da transferência de qualquer detento em Guantánamo para qualquer lugar.

Há sinais de impaciência do Judiciário. Em fevereiro, um tribunal de apelações decidiu que juízes podem fiscalizar as condições de detenção em Guantánamo, e agora um juiz examina todos os procedimentos usados pelos militares carcereiros para alimentar grevistas de fome à força.

O coronel David Heath, que assumiu a direção da prisão de Guantánamo recentemente, disse que o aumento da fiscalização dos procedimentos usados na prisão não o intimida.

Ele disse que pretende manter a rotina dos detentos da cadeia, para que os dias continuem a passar em tranquilidade. "Não passo muito tempo pensando em quem pode ser libertado ou quem não", ele disse.

"Procuro dar o mesmo tratamento a todos, na medida do possível. 'Tratamento justo e igual' é o que eu recomendo aos meus homens, porque os detentos notam as variações. Eles já estão lá há muito tempo."

Tradução de CLARA ALLAIN


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