Folha de S. Paulo


Concorrência entre polícias pode ter prejudicado busca por Madeleine

A investigação sobre o desaparecimento de Madeleine McCann foi dificultada porque polícias britânicas concorrentes competiram entre si.

A afirmação é do autor de um relatório secreto do Home Office (o Ministério do Interior britânico).

As relações com as autoridades britânicas foram prejudicadas quando agências britânicas diferentes se digladiaram para envolver-se no caso destacado, levando a avisos de que o Reino Unido não deveria agir como "potência colonial".

Encomendado em 2009 pelo ex-ministro do Interior Alan Johnson, o relatório, que não foi publicado, disse também que a decisão de colocar a cargo da operação a polícia de Leicestershire, onde a família McCann residia, foi um erro, porque ela não estava corretamente equipada para lidar com uma investigação de tanta amplitude geográfica.

Embora o relatório nunca tenha sido levado a público, levou à reabertura da investigação em 2011 pela polícia Metropolitana, segundo a emissora Sky News, informada do teor do documento.

Jim Gamble, ex-diretor do Centro de Exploração Infantil e Proteção Online (Ceop) e autor do relatório, disse que a concorrência entre chefes de polícia exerceu um efeito de longo prazo que prejudicou a investigação do caso.

Ele disse à Sky News: "Todo o mundo veio com as melhores intenções. Isso criou um clima de caos e de concorrência, as pessoas querendo intrometer-se e ajudar, e em muitos casos, na minha opinião, querendo que fosse notado que queriam ajudar."

"Se olharmos para a questão com franqueza, houve algumas pessoas em cargos de liderança que queriam representar sua organização, queriam que fosse notado que estavam assumindo papel de liderança e fazendo contribuições críticas. Isso dificultou o trabalho de uma força policial pequena e regional, como a de Leicestershire."

"Não tenho dúvida de que as relações com os portugueses foram impactadas por isso desde o início, e acho que isso exerceu um efeito negativo de longo prazo sobre a investigação. Acho que até hoje a equipe de investigação do Met (a polícia Metropolitana ou Scotland Yard) que está atuando no caso agora está tendo que administrar e procurar suavizar essas relações, e talvez, justiça seja feita aos portugueses, consertar alguns dos estragos provocados inicialmente na relação com eles."

Semanas após o desaparecimento de Madeleine, em maio de 2007, Scotland Yard, a National Policing Improvement Agency (que dá suporte à polícia) e o Ceop tinham aconselhado a polícia portuguesa.

A entidade beneficente Crimestoppers divulgou uma linha direta separada para receber ligações de pessoas do público que tivessem informações relativas ao caso, e Downing Street, o Home Office e o Ministério das Relações Exteriores estavam todos pedindo briefings das diversas agências.

Gamble explicou que a reação inicial da polícia portuguesa ao caso foi caótica e aleatória. Segundo ele, "foi diferente da ação policial mais estruturada que se esperaria aqui no Reino Unido. Não houve um senso de ordem."

"Inicialmente, os pais devem ser os suspeitos número um", ele disse à Sky. "Na maioria dos casos, nas primeiras horas da investigação, que têm valor inestimável, você coleta evidências que permitem excluir ou não os pais como suspeitos.

E essa foi uma das falhas enormes neste caso: naquelas primeiras horas caóticas que levaram às primeiras semanas de investigação feita de modo aleatório, as pessoas não se concentraram em eliminar provas que não eram pertinentes."

"Quando fiz a revisão da investigação, não havia sinais de que algumas das informações críticas e das análises que poderiam ter levado a informações e pistas valiosas tivessem sido usadas para levar a investigação adiante."

Contudo, não obstante o relatório secreto, Gamble diz que "não está confiante" que a resposta das autoridades britânicas a situações semelhantes no futuro será melhor do que foi no caso McCann, porque Theresa May não implementou uma de suas recomendações principais.

O relatório sugeriu a criação de um centro nacional para crianças desaparecidas, unindo os recursos dos maiores especialistas e da melhor tecnologia, mas o centro não foi criado.

Mas Gamble acredita que o desaparecimento de Madeleine McCann acabará sendo elucidado algum dia, apesar dos reveses. "Alguém sabe o que aconteceu", ele disse.

"Acredito realmente que ainda durante minha vida vamos descobrir o que aconteceu. Relacionamentos e lealdades mudam, e em algum momento alguém vai denunciar o que sabe."

Gamble se recusou a divulgar todos os detalhes do relatório. O Home Office, que se negou a divulgar o relatório quando solicitado sob as leis de liberdade de informação, se negou a comentar o documento mas disse: "Continuamos comprometidos com a busca por Madeleine McCann".

Tradução de CLARA ALLAIN


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