Folha de S. Paulo


Culto a "anjo caído" faz yazidis serem considerados adoradores do Diabo

Em suas memórias romanceadas, "Encontros com Homens Notáveis", o místico greco-armênio George Gurdjieff relata encontros com meninos yazidis no Cáucaso de sua infância.

O impressionava particularmente o fato de que, "adoradores do diabo", os garotos não conseguiam deixar um círculo desenhado no chão em torno deles –supostamente uma espécie de tributo por outras liberdades concedidas pelo Tinhoso.

Consultando professores, ouviu falar do conceito de histeria para explicar o que acontecia com aqueles jovens. De um modo ou de outro, o relato escrito na primeira metade do século 20 e publicado em inglês em 1963 traz a curiosidade e o preconceito com que os yazidis são tratados.

Minoritários em áreas majoritariamente muçulmanas, os yazidis vêm sofrendo perseguições há séculos. Há relatos de massacres promovidos pelos sultões otomanos nos séculos 18 e 19, desembocado no atual cerco promovido pelos fundamentalistas do Estado Islâmico no norte do Iraque.

O motivo central é a crença citada por Gurdjieff de que eles "adoram o diabo". Isso é derivado do culto yazidi a Melek Teus, o nome anglicizado do "Pavão Anjo".

Na cosmogonia do grupo, oriunda do caldeirão étnico-cultural que abrange partes da Síria, Turquia, Iraque, Armênia e Geórgia, Deus criou o mundo e o colocou sob responsabilidade de sete arcanjos. Ao criar o homem, Deus ordenou então que esses seres divinos se curvassem a Adão.

Melek Teus, o primeiro e mais sábio dos arcanjos, recusou-se porque sabia ser uma emanação do poder divino. Por isso, foi agraciado no que revelou-se um teste de Deus e acabou elevado ainda mais no panteão sagrado dos yazidis.

O problema é que o relato é extremamente parecido com o que existe no Corão para descrever a queda do espírito ("djinn") Iblis por recusar-se a honrar Adão. E ele virou ninguém menos que Shaytan, o Satã dos muçulmanos, cuja função teológica é semelhante à do Satã cristão.

Tanto no islamismo quanto no cristianismo, há a confusão entre esse anjo caído primordial e outros espíritos na mesma condição, que acabam levando o nome genérico de "diabo". Para os yazidis, contudo, o seu Melek Teus nada tem de malvado ou perigoso –ao contrário, descrito como um esplendoroso pavão, que encarna a sabedoria sobre todas as coisas.

Mas isso é o suficiente para que os zelotes do Estado Islâmico busquem sua destruição. Como ocorreu no Afeganistão sob o jugo do Taleban (1996-2001), tradições religiosas centenárias são consideradas apostasias (renúncias à fé) para esses fundamentalistas.

A religião yazidi é um amálgama de crenças que traz elementos do zoroastrismo persa, tradições da Mesopotâmia, do islamismo e do cristianismo. Há práticas como o batismo e cinco orações diárias, além de um intrincado sistema de tabus e práticas cotidianas.

A mistura também decorre das diversas migrações dos yazidis –hoje estão concentrados no Iraque, onde está maioria dos cerca de 700 mil integrantes do grupo.


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