Folha de S. Paulo


Opinião: Gaza é capaz de funcionar mesmo durante guerra

Estou fazendo reportagens em Gaza há uma semana, e, em meio aos civis mortos e feridos que passam diante de mim sobre macas, das pessoas desesperadas gesticulando à minha frente e das noites passadas numa cidade sem luz, debaixo de bombardeios, cheguei a uma conclusão que eu não esperava: Gaza "funciona".

O que quero dizer é que, com recursos, ligações com o mundo externo e tempo, esta entidade política estreita poderia funcionar normalmente.

Com sua areia lisa, mar e céu azuis, poderia até se converter em destino turístico. O lugar já tem um pool enorme de capital humano formado e educado -se bem que, lamentavelmente, seus profissionais mais exímios sejam cirurgiões de traumatologia.

Mas os hotéis na praia de Gaza estão desertos. Seus garçons, constrangidos, têm dificuldade de preparar um café, trabalhando sobre uma só boca de fogão. Os pescadores no porto se aventuram a sair de canoa para apenas uns 20 metros da praia quando as hostilidades estão em curso, ou cem metros de lancha durante as tréguas esporádicas.

A vida cotidiana está ficando impossível, mesmo para as pessoas que têm dinheiro e amigos no Ocidente. Há filas para buscar água, e os postos de combustíveis estão vazios. Igualmente angustiante para os jovens urbanizados é que a conexão com a internet é esporádica. Conheci duas mulheres, profissionais altamente instruídas; o andar de cima do prédio em que viviam tinha sido demolido por um foguete israelense.

Agora também elas estavam mergulhadas no mundo das filas, da pouca higiene, da vida de sem-teto. O fato de possuir uma bolsa elegante não isenta uma pessoa disso.

A moeda é o shekel, mas a maior preocupação é o ouro. Os palestinos tem suas economias guardadas em ouro e joias.

Cerca de 250 mil pessoas foram obrigadas a deixar suas casas, e, para pessoas que têm ouro, mudar-se para uma escola superlotada e imunda, para dormir ao lado dos burricos dos pobres, não parece uma opção melhor que ficar em suas casas e esperar pelas bombas.

A faixa de Gaza funciona graças a seus moradores. Desde que o Hamas assumiu o controle, em 2007, o lugar é administrado por um grupo designado como terrorista, e sob as leis islâmicas. Sem poder reconstruir após a invasão israelense de 2008-09, os moradores do território em vez disso construíram túneis –ninguém conhece sua extensão ao certo– em que os membros da ala militar do Hamas, as Brigadas Qassam, vivem, guardam seus foguetes e lutam. Os túneis também são usados para trazer para o território os bens essenciais proibidos durante o cerco de Gaza, que já dura sete anos.

Surpreendentemente, então, durante boa parte do dia vemos o lugar como poderia ser se o Hamas não existisse. A ordem é mantida por policiais que não são do Hamas; mulheres sem véu movimentam-se tão livremente quanto as que usam véu completo; médicos que retornaram da Alemanha ou do Canadá viram os ossos esmagados de jovens que viveram e podem morrer nesta estreita faixa de terra. E dois terços da população pulam, correm e brincam de lutar, pois são crianças.

Quando esta guerra terminar, nada de bom acontecerá na faixa de Gaza enquanto não acabarem o cerco e o bloqueio. De fato, com 40% da área urbana agora inabitável devido à destruição, haverá uma crise humanitária de grandes proporções que durará meses. Essa crise não será resolvida por ONGs sozinhas. O modo como for resolvida vai determinar se a Faixa de Gaza poderá ou não sobreviver.

A UNRWA, a agência das Nações Unidas para os refugiados palestinos, que abriu suas escolas limpas, azuis e brancas para uma enxurrada de humanidade caótica e suja, diz que o território está "à beira de um precipício". O hospital que acabo de visitar tem seis leitos em sua UTI, mas 95 pessoas com ferimentos de bala ou bomba para tratar.

A lógica dita que ou a ajuda chega em escala inusitada ou as pessoas saem da faixa de Gaza -não amanhã, mas à medida que as semanas transcorrerem sem saneamento ou eletricidade. Os palestinos temem que a crise humanitária seja aproveitada para tirá-los permanentemente da terra capturada pelos israelenses, acabando por levá-los a campos de refugiados no Egito.

Já estive em países muçulmanos onde reina o conservadorismo profundo, o baixo nível de educação e a desconfiança em relação ao Ocidente. Este não é um desses países. Constantemente encontro pessoas de alto nível de instrução e que falam inglês; pessoas alegres e amigáveis, algo que é por si só espantoso, em vista do grau de terror que chega com o cair da noite.

O mundo não é tão rico em pessoas altamente instruídas e capacitadas para que possa se dar ao luxo de desperdiçar as vidas de 1,8 milhão de palestinos por trás das grades de ferro e paredes de concreto que delimitam a faixa de Gaza.

Já perdi a conta de quantas vezes já conheci algum jovem de 18 ou 19 anos que tem orgulho não de ser combatente, militante ou artista de rua sempre fugindo das autoridades. Quando pergunto qual é seu trabalho, a resposta mais comum é "marceneiro". Trabalhar com madeira -não com metal ou código de computador-é o limite do que o bloqueio permite que seja alcançado pelo trabalhador manual qualificado na faixa de Gaza.

Diante dessas limitações, é natural que muitos se resignem: "viver é o mesmo que estar morto" é uma frase ouvida entre jovens. É a lógica perfeita para a organização militar niilista à qual alguns optam por aderir. Mas seu oposto é a resiliência que leva alguém a reparar as ligações elétricas de uma casa depois de sua fachada ser destruída por uma bomba; que faz alguém sentar-se no tapete, assando pão sobre um fogareiro, depois de sua casa ter sido reduzida a pó.

Só existem duas rotas econômicas para a vida voltar a chegar à faixa de Gaza, e, diante da amargura do conflito, a rota vinda de Israel não será a principal. O Egito detém a chave da integração econômica de Gaza com o resto da economia global. Basta abrir o posto de travessia de Rafah para os túneis deixarem de ser necessários.

Para o mundo, esta sociedade abandonada, miserável e totalmente flagelada virou sinônimo de impossibilidade e desespero. Mas ninguém informou os moradores de Gaza disso. Eu os vi plenos de esperança.

PAUL MASON é editor de economia da Channel 4 News.

Tradução de CLARA ALLAIN


Endereço da página: