Folha de S. Paulo


Opinião: Sanções contra Rússia devem buscar mudanças e não punição

A raiva e o pesar determinaram a reação à derrubada do jato de passageiros malasiano na Ucrânia, e o desejo de identificar e punir os culpados é natural. Mas é preciso enfatizar que o que aconteceu não resultou de um ato deliberado, e seria tolice permitir que a vingança, ou o desejo de ver alguém no banco dos réus, oriente a política a adotar depois dele.

A verdadeira questão não é que um avião civil tenha sido derrubado, mas que existe um estado de guerra no leste da Ucrânia e no espaço aéreo da região, e o problema real é como pôr fim a essa guerra. Enquanto os corpos das vítimas da queda do jato estavam chegando à Holanda, em 23 de julho, mísseis disparados pelos rebeldes abateram dois jatos da força aérea ucraniana e os combates terrestres se aproximaram mais das cidades de Donetsk e Luhansk.

É uma situação insana e perigosa. Os civis que estavam no avião já perderam suas vidas, mas são os civis em terra, nessas cidades e em torno delas, para não mencionar os soldados, que em breve perderão as deles caso isso continue.

A questão que a União Europeia e os Estados Unidos deveriam ter sempre em mente ao tomar decisões sobre sanções e outras políticas comuns é como mudar o comportamento do presidente Putin e sua clara opinião de que a Rússia tem direito de influenciar os assuntos ucranianos.

Qualquer coisa que torne mais provável uma decisão dele de pôr fim à intervenção militar russa deveria ser tentada. E, por outro lado, qualquer coisa que a torne menos provável, por mais psicologicamente satisfatória ou agradável para as pessoas que já decidiram que a Rússia é um país que não deve ser considerado parte da civilização, deveria ser evitada.

Com certeza haverá algumas sanções novas e mais fortes, de qualquer forma, e isso já estava claro antes da tragédia do avião. Agora, o número de sanções aumentará um pouco mais, mas também surgirão argumentos defendendo ainda mais sanções, e sanções mais intensas.

Putin enfrenta perspectivas econômicas de longo prazo que não parecem tão boas, porque o balanço do mercado em termos de oferta mundial de energia já não favorece tanto a Rússia, dado o boom de produção de energia nos Estados Unidos. Por que, a linha dura pode argumentar, não colocá-lo ainda mais contra a parede? A resposta é que, dado o caráter e a percepção do líder russo de que o maligno Ocidente está tentando isolar e demover a Rússia, isso poderia produzir não uma retirada da Ucrânia mas uma intensificação da interferência russa lá. As sanções devem ser calibradas de maneira a levar o líder russo a reconsiderar.

Também deveriam vir acompanhadas por ações que possam levar a um acordo na Ucrânia que Putin talvez considere tolerável, ou que ao menos propicie cobertura para que ele mude de abordagem, e ao mesmo tempo seja aceitável para Kiev.

Os excessos da política russa obscureceram o fato de que existe uma questão genuína quanto ao futuro dos cidadãos de fala russa na Ucrânia que não receberam bem a revolução de Maidan e continuam hostis a Kiev.

O regime de Putin certamente manipulou e multiplicou suas queixas, e os rebeldes separatistas efetivamente bloqueiam a comunicação entre os moradores do leste que estariam prontos a negociar um acordo que confira maior autonomia à região e o presidente ucraniano Petro Poroshenko. No entanto, isso não altera o fato de que a questão precisa ser resolvida se o objetivo é a paz na Ucrânia.

Putin está aprisionado por suas próprias contradições, quanto a isso. Parece ter decidido não anexar o leste da Ucrânia, mas mantém uma presença lá que só faria sentido se fosse essa a sua intenção. Uma autonomia que satisfaça a maioria dos cidadãos do leste e ao mesmo tempo informe àqueles dentre eles que prefeririam fazer parte da Rússia que terão de se contentar com menos parece ser seu único objetivo realista, a menos que ele simplesmente deseje solapar e desestabilizar o país vizinho.

As considerações quanto às sanções precisam ser influenciadas por essas determinação, e não por disputas sobre a severidade da punição que a Rússia merece ou por disputas mesquinhas sobre quem deveria arcar com os maiores sacrifícios na hora de impor a punição decidida.

Sugerir que a França deveria suspender a entrega dos navios produzidos para a Rússia foi uma jogada bastante deselegante, e a resposta francesa de que as sanções deveriam afetar acima de tudo os mercados financeiros londrinos era de esperar. E de qualquer forma, a questão real é mudança, e não punição.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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