Folha de S. Paulo


Guerra recente com a China assombra o Vietnã

Ela tinha 14 anos quando ouviu o barulho da artilharia chinesa nas colinas em torno de sua casa, no norte do Vietnã, e centenas de milhares de soldados chineses haviam atravessado a fronteira. Ela se lembra de ter corrido com seus pais entre os pessegueiros, mas a família caiu diretamente nas mãos do inimigo.

Sua mãe levou um tiro e morreu diante dela; minutos depois, seu pai foi ferido. "Fiquei apavorada e achei que não iria sobreviver. As balas voavam para todo lado. Eu podia ouvi-las e sentir o cheiro de pólvora", disse Ha Thi Hien, hoje com 49 anos.

O conflito entre a China e o Vietnã em 1979 durou menos de um mês, mas os combates foram tão ferozes que seu legado ainda permeia as relações entre os dois países comunistas, agora em conflito no mar do Sul da China.

Justin Mott/The New York Times
Ha Thi Hien, sobrevivente da guerra entre o Vietnã e a China em 1979, em uma ferrovia em Lang Son que liga Hanói a Pequim
Ha Thi Hien, sobrevivente da guerra entre o Vietnã e a China em 1979, em uma ferrovia em Lang Son que liga Hanói a Pequim

Durante as tensões atuais, os sentimentos de repúdio pelos chineses por parte do povo vietnamita parecem mais ardentes do que aqueles demonstrados pelo Politburo que governa o país.

"A população do Vietnã quer ficar livre do punho de ferro da China", disse Pham Xuan Nguyen, diretor da Associação de Literatura de Hanói, que protestou diante da embaixada da China em Hanói contra a plataforma de extração de petróleo chinesa. "E quer saber qual é a estratégia do governo e se ele realmente está contra a China ou disposto a fazer concessões."

Na guerra de 1979, ambos os lados declararam vitória, embora nenhum deles tenha prevalecido, e seus Exércitos tiveram baixas terríveis.

Depois que a China e o Vietnã normalizaram suas relações, em 1991, o governo eliminou todas as comemorações oficiais da luta de 1979, o que contrasta com os numerosos memoriais pelas guerras do Vietnã contra os franceses e os americanos, nas quais o apoio chinês foi vital.

As relações fraternais entre os Partidos Comunistas melhoraram, empresas floresceram nas regiões de fronteira e as más lembranças foram eclipsadas. O Vietnã sabe há milênios que precisa exercitar a arte de viver ao lado de uma nação poderosa, e tem feito isso em mais de uma dezena de guerras.

Mas as lembranças da carnificina de 1979 ressurgiram há dois meses, com a chegada da plataforma de extração de petróleo chinesa em águas reivindicadas por ambos os países ao largo da costa do Vietnã. Escaramuças entre barcos das guardas costeiras chinesa e vietnamita levaram a protestos contra os chineses no Vietnã.

Segundo especialistas militares, se uma guerra eclodir no mar do Sul da China, esta, com sua marinha cada vez mais bem equipada, pode vencer. Embora os Estados Unidos demonstrem interesse crescente em suspender o veto à venda de armas ao Vietnã, até agora os militares vietnamitas têm mantido distância, pois ainda lembram vividamente da Guerra do Vietnã e dos anos de relações antagônicas após seu término em 1975.

"Não esperamos ajuda de ninguém", comentou Dang Dinh Quy, presidente da Academia Diplomática do Vietnã. "Estamos confiantes de que podemos cuidar disso sozinhos."

A guerra de 1979 foi deflagrada pelo líder chinês Deng Xiaoping para punir o Vietnã por ter invadido o Camboja. O saldo conjunto de mortes foi estimado em 50 mil soldados ou mais, além de 10 mil civis vietnamitas.
Durante sua retirada, os chineses destruíram escolas e hospitais, no que os militares chineses depois chamaram de "beijo de despedida".

Desde então Lang Son foi reconstruída, e prédios modestos com placas de neon lhe dão a aparência de um próspero polo comercial. Mas as pessoas daqui ainda se lembram de um rio cheio de cadáveres vietnamitas e chineses, e do quanto demorou para que o odor terrível sumisse.

Justin Mott/The New York Times
A lápide da mãe de Hien, que foi morta no conflito de 1979 com a China. O pai de Hien ficou ferido na ocasião
A lápide da mãe de Hien, que foi morta no conflito de 1979 com a China. O pai de Hien ficou ferido na ocasião

A decisão chinesa de destruir Lang Son impressionou profundamente um estudante do ensino médio chamado Luong Van Lang, que hoje trabalha como guarda de segurança.

"Meu coração ficou cheio de ódio, pois a cidade toda foi destruída e só sobraram destroços", disse ele. Dois anos após os chineses partirem, ele foi selecionado para um treinamento para atiradores de tocaia, visando enfrentar ataques-surpresa chineses que continuaram por grande parte da década de 1980.

"Eu levantava às 2h, ia para um morro alto e via os chineses cavando túneis", relatou ele. "Eles ficavam em uma colina mais baixa que a nossa e, às vezes, iam mais para cima. Nós ficávamos esperando esse momento para atirar neles." Lang diz ter matado seis chineses em dez dias. Por sua bravura e pontaria certeira, ganhou três medalhas que ficam guardadas em uma caixa forrada de cetim.

Hien, que agora administra um hotel e recebe clientes chineses, diz que ainda vive com as lembranças terríveis de sua adolescência. Depois que sua mãe foi morta, soldados acharam uma mulher mais velha para cuidar dela e mandaram as duas se abrigarem com outras pessoas em uma caverna de calcário.

"Mas centenas de pessoas foram mortas lá", disse ela. "Eu vi uma mulher com as pernas decepadas deitada no solo. Pelo seu olhar, dava para perceber que ela ainda estava viva e queria ajuda, mas não pudemos fazer nada. Jamais vou me esquecer disso."


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