Folha de S. Paulo


Governo de Mianmar retoma postura autoritária

NAYPYIDAW, Mianmar - Três anos depois de os generais que governam Mianmar terem abandonado os uniformes e colocado o país em uma ambiciosa jornada na direção da democracia, as forças de segurança estão de volta às ruas. Tumultos promovidos por budistas radicais na cidade de Mandalay causaram duas mortes no começo de julho e levaram as autoridades a decretar toque de recolher, a enviar unidades da polícia de choque à cidade e a instalar cercas de arame farpado em torno dos bairros muçulmanos atacados.

A violência despertou temores de que os tumultos possam se espalhar às cidades mais populosas de Mianmar. Além disso, representa mais uma das decepções que vêm erodindo a euforia com que foi recebido o fim das cinco décadas de ditadura militar. Entre os revezes preocupantes, estão os ataques a uma minoria étnica conhecida como rohingya, no oeste do país, um aparente recuo na liberdade de imprensa e a falta de interesse dos investidores estrangeiros pelo país.

Muita gente concorda que as mudanças dos últimos três anos tornaram Mianmar mais livre e aberto do que o país brutalmente repressivo que existia sob o domínio militar. Mas uma das propostas de maior destaque do governo neste ano envolve uma série de medidas polêmicas de "proteção" aos budistas.

As leis propostas -sob pressão de um movimento budista radical ao qual muita gente atribui a culpa por instigar a violência contra os muçulmanos- restringiriam as conversões religiosas e exigiriam que mulheres obtenham consentimento para se casar fora de sua religião.

"A liberalização acabou", disse Daw Zin Mar Aung, ativista dos direitos da mulher que recebeu ameaças de morte por sua oposição ao projeto. "Por que um presidente proporia leis tão radicais?"

Soe Than Win - 4.jul.2014 /AFP
Moradores de Mianmar acompanham marcha fúnebre de civil morto durante protesto em Mandalay
Moradores de Mianmar acompanham marcha fúnebre de civil morto durante protesto em Mandalay

Zin Mar Aung, que como muitos outros dos líderes cívicos de Mianmar foi prisioneira política, acusa o governo de construir uma nova identidade nacional com base no nacionalismo e chauvinismo budista, não em uma democracia multicultural.

O recuou quanto à liberdade de imprensa se relaciona, em pelo menos um caso, à violência que irrompeu entre budistas e muçulmanos e causou mais de 250 mortes. No caso em questão, um correspondente da revista "Time" foi proibido de entrar no país depois de escrever um artigo sobre o movimento budista radical.

Os jornalistas estrangeiros passaram por reduções na validade de seus vistos. Em fevereiro, jornalistas foram encarcerados sob uma lei da era colonial britânica, a Lei de Segredos de Estado, por reportarem sobre o que seria uma instalação para a produção de armas químicas.

O nível decepcionante de investimento estrangeiro foi um golpe para o partido governista, o Partido da União, Solidariedade e Desenvolvimento, criado pela antiga junta militar. O partido contava com a criação de empregos para fazer frente à Liga Nacional pela Democracia, o partido de Daw Aung San Suu Kyi, premiada com o Nobel da Paz, na eleição que deve acontecer no ano que vem.

Aung San Suu Kyi oferece certa dose de legitimidade à democracia incipiente e ao processo de reforma, por ter aceitado participar do Legislativo e por ter cultivado relações mais calorosas com as Forças Armadas, que a mantiveram aprisionada por quase duas décadas.

Esse relacionamento parece ter amargado após a recusa do Legislativo -no qual as Forças Armadas controlam um quarto dos assentos- em mudar uma lei que a impede de se tornar presidente. Ela começou a lutar para reduzir o poder dos militares. No mês passado, disse a uma multidão de partidários que as Forças Armadas "estão assumindo direitos que não merecem".

"Eles são donos de tudo, terras, empresas e licenças de exportação", disse U Win Htein, ex-oficial do Exército e agora membro da oposição no Legislativo.

Quase sem exceção, os principais postos do atual governo de Mianmar são detidos por antigos oficiais das Forças Armadas.

Ainda assim, existe o medo de que a eleição exacerbe as tensões religiosas, especialmente se o partido governista tentar explorar a popularidade do movimento budista radical.

U Nyi Nyi, muçulmano e proprietário de uma casa de chá, disse que os muçulmanos confiam muito pouco na polícia, formada por maioria esmagadora de budistas, depois que ela não impediu massacres de muçulmanos em Meikthila e outras cidades nos dois últimos anos.

Depois da violência que irrompeu no bairro de Nyi Nyi, a polícia apreendeu bastões e espadas em casas muçulmanas, mas não desarmou a multidão de agressores budistas, disse ele. Nyi Nyi questiona: "Como nos defenderemos se atacados?"

Colaboraram Eaint Thiri Thu e Wai Moe


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