Folha de S. Paulo


Grupo jihadista do Iraque mapeia brutalidade de suas ações em relatório anual

Ele não é uma grande empresa e não tem acionistas, mas o sucesso militar rápido e inesperado e a brutalidade do grupo jihadista que avança pelo Iraque vem sendo registrado com o grau de precisão muitas vezes reservado para as contas de empresas.

Desde 2012 o Estado Islâmico no Iraque e no Levante (conhecido como EIIL) divulga relatórios anuais em que apresenta suas operações com riqueza de detalhes numéricos e geográficos: o número de atentados a bomba, assassinatos, postos de controle, missões suicidas, cidades tomadas e até "apóstatas" convertidos à sua causa.

De acordo com o relatório, apenas em 2013 o grupo realizou quase 10 mil operações no Iraque: mil assassinatos, 4.000 artefatos explosivos improvisados plantados e centenas de prisioneiros radicais libertados. No mesmo ano, centenas de "apóstatas" teriam aderido ao EIIL.

Intitulados "Al-Naba" (As Notícias), os relatórios de 2012 e 2013 (ano em que 8.000 civis morreram no Iraque) foram analisados pelo Instituto para o Estudo da Guerra, com sede nos EUA, que corrobora boa parte das informações que contêm. O objetivo do EIIL parece ser mostrar suas realizações a potenciais doadores.

Os relatórios revelam uma organização que, segundo analistas, não é exatamente o bando terrorista maltrapilho do qual falam autoridades iraquianas, mas mais uma estrutura militar organizada e dotada de uma estratégia política clara que visa a criação de um Estado sectário sunita. E a organização teria várias das características de uma entidade corporativa.

"Os relatórios incluem medidas de desempenho, do mesmo modo como essas informações são apresentadas para doadores", disse Jessica Lewis, diretora de pesquisas do Instituto para o Estudo da Guerra. "Afirmam que a organização opera como um exército e que tem ambições de criar um Estado."

Nigel Inkster, ex-assistente-chefe do serviço de inteligência britânico MI6 e hoje diretor de ameaças transnacionais no Instituto Internacional de Estudos Estratégicos, disse: "O EIIL produz os relatórios quase como se fosse uma empresa, com informações detalhadas sobre alvos e operações de martírio. Temos uma visão clara da estrutura, do planejamento e da estratégia da organização."

As ambições do EIIL vêm se delineando gradualmente nos últimos 12 meses, mas na última semana tomaram forma com rapidez de relâmpago, com o território sob seu controle estendendo-se pelo norte do Iraque a partir do leste da cidade síria de Aleppo.

SEM SURPRESA

O que fica claro a partir dos documentos é que a campanha do EIIL para controlar o território iraquiano povoado por sunitas -e sua captura de Mossul, a segunda maior cidade do país-não deveria ter pego de surpresa nem o governo iraquiano, comandado por xiitas, nem seus aliados ocidentais. Os relatórios destacam que a província de Nínive, que inclui Mossul, tomada na semana passada, é alvo do EIIL há muito tempo.

A análise do Instituto para o Estudo da Guerra mostra que 30% dos ataques do EIIL em 2012 e 2013 aconteceram em Nínive, de modo que a província foi a "zona principal de ataques" do grupo.

"O número de ataques no Iraque vem subindo constantemente há meses", disse John Drake, analista sênior do Iraque na firma de segurança AKE. "Hoje, mais de cem pessoas são mortas a cada semana e o EIIL não para de se fortalecer."

Os ataques lançados pelo EIIL não têm sido atos de violência aleatória, como sugerem relatos iraquianos. "O EIIL vem enfraquecendo constantemente as forças de segurança iraquianas", disse Drake, "abatendo comandantes em assassinatos seletivos e derrubando a moral das tropas."

Poucos que acompanham de perto a situação das forças de segurança iraquianas treinadas pelos EUA se surpreenderam pelo fato de tantos de seus homens terem aparentemente abandonado seus postos em Mossul quando o EIIL atacou, disse Drake.

De acordo com especialistas regionais, o EIIL tem em suas fileiras 15 mil combatentes experientes, e, além de receber recursos de redes jihadistas particulares no Golfo, desenvolveu fontes internas de recursos através do contrabando de petróleo na Síria, sequestros e crime organizado.

O grupo tomou campos petrolíferos na província síria de Deir Ezzor ou formou alianças com tribos para explorar o óleo.

Em termos financeiros, 2014 tem sido um ano de sucesso enorme para o grupo, depois de seus combatentes roubarem centenas de milhões de dólares de bancos em Mossul. De acordo com o Conselho de Relações Exteriores, o EIIL já estava extorquindo impostos de estabelecimentos comerciais em Mossul antes mesmo de tomar a cidade, auferindo com isso até US$8 milhões por mês.

O EIIL é sucessor de um grupo que era conhecido como Al Qaeda no Iraque e que empregava métodos tão brutais que levou tribos sunitas, com a ajuda e incentivos financeiros das forças dos EUA, a se voltarem contra ele em 2006. O EIIL aprendeu uma lição com isso.

"O EIIL decidiu que a solução seria dispor de força militar melhor e que deveria ser uma versão mais contundente da Al Qaeda", disse Jessica Lewis. Apesar disso, o grupo se adaptou ao uso de métodos novos e modernos de difundir sua mensagem. O uso hábil das mídias sociais tem sido uma de suas principais táticas de campanha na Síria e no Iraque. Para Aaron Zelin, membro do Instituto Washington e especialista em jihadistas, o EIIL "provavelmente é mais sofisticado que a maioria das empresas americanas" no uso de plataformas como o Twitter.

Zelin aponta para as atividades do grupo nas mídias sociais na Síria, que teriam aberto caminho para sua guerra de propaganda no Iraque. Imagens saem constantemente de Raqqa -o reduto do grupo no norte do país-no Facebook, Twitter e YouTube, retratando o proto-Estado que ele está criando na região.

O uso de mídias sociais pelo EIIL é uma das principais razões pelas quais o grupo se tornou a organização mais procurada por combatentes de países estrangeiros, incluindo estimados 2.000 da Europa, segundo cálculos de agências de inteligência ocidentais.

Resta a ver se o EIIL será capaz de consolidar seu domínio do Iraque. Analistas dizem que a ferocidade com que o grupo atua pode levá-lo a perder em pouco tempo o apoio daqueles que ele quer governar. Na Síria, o EIIL foi expulso de Aleppo e boa parte de Idlib depois de ser repudiado por outros grupos rebeldes.

"É o velho problema do escorpião e da raposa", comentou Inkster. "A ideologia jihadista contém as sementes de sua própria destruição."

Tradução de Clara Allain


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