Folha de S. Paulo


'Queremos reconstruir a confiança com o Brasil', diz vice dos EUA

Em jantar no mês passado com correspondentes estrangeiros no Palácio da Alvorada, a presidente Dilma Rousseff chamou o vice-presidente americano, Joe Biden, de "um sedutor". "Nós ainda não nos casamos, mas estamos namorando de alguma maneira", disse, segundo relato da BBC.

Em entrevista exclusiva à Folha, Biden, 71, diz que acredita "nos benefícios de tratar cara a cara nossas mais importantes relações". Ele chega nesta segunda-feira (16) ao Brasil para ver a estreia dos Estados Unidos na Copa em Natal, e nesta terça se encontra com Dilma e com o vice-presidente Michel Temer.

Mandel/AFP
O vice-presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, 71
O vice-presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, 71

Espécie de enviado especial para a América Latina do governo Obama, o "sedutor" foi escalado para tentar melhorar as relações entre os dois países, muito afetadas pela divulgação da escala da espionagem americana no ano passado.

Sobre a difícil relação dos EUA com países governados pela esquerda na região, depois do trauma da Guerra Fria, Biden diz que a Casa Branca faz "um esforço concentrado para melhorar nosso relacionamento com os governos da região além do âmbito ideológico". Ele respondeu as perguntas da Folha por e-mail –a tradução para o português foi feita pelo governo americano.

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Folha - O senhor acha que a presidente Dilma Rousseff será recebida com um jantar de estado em Washington, depois do adiamento da visita no ano passado?
O presidente e eu aguardamos a oportunidade de receber a presidenta Rousseff outra vez em Washington. O Brasil é um importante parceiro e ator global e o convite do presidente Obama à presidente Rousseff reflete a importância que damos à relação bilateral.

Isso também é parte do motivo pelo qual estou viajando ao Brasil. Claro que em Natal torcerei pela seleção norte-americana no jogo contra Gana. Depois do jogo, irei a Brasília me encontrar com a presidente Rousseff e com o vice-presidente Temer, porque acredito nos benefícios de tratar cara-a-cara e com o maior respeito das nossas mais importantes relações. Quando falei ao telefone com a presidente Rousseff no dia 8 de maio, deixei claro que o presidente e eu estamos comprometidos em avançar a relação bilateral com o Brasil e em trabalhar na direção de uma parceria na qual a realidade reflita as promessas em todas as questões, de energia à educação, de comércio à ciência e tecnologia.

Já estamos no caminho de cumprir essa promessa. O comércio entre os dois países está em torno de US$ 100 bilhões por ano. Continuamos engajados em diálogos ativos para avançar em áreas concretas de cooperação. Membros do Diálogo Comercial Brasil-Estados Unidos, do Diálogo Econômico Financeiro, e do Comitê Consultivo Agrícola se encontraram recentemente. Os Estados Unidos apoiaram a liderança do Brasil como o anfitrião da NetMundial para discutir o futuro da governança da internet. O secretário do Transporte, Anthony Foxx, esteve no Brasil no mês passado para encontrar maneiras de trabalharmos em parceria com o Brasil em infraestrutura. Os intercâmbios educacionais também estão se expandindo rapidamente, à medida que trabalhamos para promover as iniciativas 100 Mil Unidos nas Américas, do presidente Obama, e Ciência sem Fronteiras, da presidente Rousseff.

Mas o céu é o limite, e há muito mais que podemos fazer juntos. É isso que quero discutir com a presidente Rousseff.

O senhor disse recentemente que "nossa luta com a antiga União Soviética algumas vezes nos deixou do lado de líderes que não compartilham nossos valores". E disse também que os Estados Unidos "acabaram do lado certo da história". Mas, para muitos, os Estados Unidos não foram capazes de trabalhar bem com governos de esquerda eleitos democraticamente na América Latina. O senhor reconhece essa dificuldade? Como mudar isso?
Você está se referindo à entrevista dada em março no Chile, quando pedi ao governo da Venezuela que protegesse as liberdades fundamentais e se engajasse em um diálogo genuíno com a oposição. Todos os governos eleitos democraticamente, tanto os de esquerda quanto os de direita, têm a responsabilidade de defender e respeitar esses direitos, que incluem liberdade de expressão e de associação.

Desde o início da administração Obama, fizemos um esforço concentrado para melhorar nosso relacionamento com os governos da região além do âmbito ideológico. Nosso objetivo é fomentar uma agenda positiva baseada na promoção dos interesses comuns e no enfrentamento de desafios compartilhados.

Ao mesmo tempo, o continente está passando por desafios como consolidação democrática, e a Venezuela é um caso emblemático de enfraquecimento das instituições democráticas. Tive encontros com a maioria dos líderes deste continente e me inspirei em suas histórias pessoais. Homens e mulheres que sofreram na ditadura e agora são líderes de algumas das sociedades mais vibrantes e inclusivas da região. Eles são estudantes de história, e entendem a importância de se manter uma posição equilibrada e apoiar instituições democráticas sólidas para preservar os direitos de todos.

Falando de livre comércio entre Brasil e EUA, a Aliança do Pacífico vai isolar o Brasil? Há possibilidade de levar a discussão dos subsídios à agricultura americana à mesa de negociação?
Eu prefiro olhar para a relação Brasil-Estados Unidos de uma maneira bem mais ampla. O maior desafio e oportunidade na relação é como nossos dois países podem construir uma parceria abrangente do século 21.

Há dois fatos importantes relacionados a isso que pressagiam um sentimento de inevitabilidade à relação Brasil-Estados Unidos, e à medida que se tornam mais aparentes, nos ajudarão a superar obstáculos temporários que são parte de qualquer relação entre dois países.

Primeiro, as questões que definem a relação bilateral são cada vez mais globais em sua natureza, como segurança alimentar e energética, mudança climática, não-proliferação e a guerra contra o terrorismo.

Compartilhamos interesses comuns em tratar desses desafios. À medida que o Brasil continua a emergir como ator global, é provável que nossos interesses convirjam mais e mais à medida que trabalhamos juntos para construir estruturas internacionais que promovam prosperidade, segurança, e bem-estar de nossos cidadãos.

Em segundo lugar, a principal força de nossa relação são as crescentes conexões entre nossos povos e empresas. Até o fim do ano, os Estados Unidos terão recebido mais de 26 mil estudantes em mais de 200 universidades norte-americanas. Os investimentos brasileiros diretos nos Estados Unidos estão em vias de igualar os investimentos dos Estados Unidos no Brasil, e a aquisição de marcas americanas líderes como Anheuser-Busch, Burger King, e Pilgrim's Pride por brasileiros está redesenhando como o povo americano entende a presença do Brasil em nossa economia. Do lado dos Estados Unidos, empresas como Ford e General Motors estão no Brasil há tanto tempo que muitos brasileiros acham que são empresas nacionais.

O que isso significa em termos práticos é que os interesses do Brasil e Estados Unidos se sobrepõem significativamente e devemos sempre buscar maneiras de formar parcerias pelo benefício dos dois países. O Brasil não pode e não deveria ser isolado - isso iria contra nossos interesses nacionais, assim como contra os interesses do resto dos países do continente.

A relação Brasil-EUA esfriou por causa das revelações sobre a Agência Nacional de Segurança (NSA). Qual será sua mensagem à presidente Rousseff no encontro que terão?
Reconhecemos que revelações não autorizadas sobre programas de inteligência dos Estados Unidos geraram preocupações em governos do mundo todo, incluindo o governo e o povo brasileiro. É por isso que em janeiro o presidente Obama fez um discurso anunciando importantes mudanças, como estender muitas das proteções à privacidade que damos a nossos cidadãos a cidadãos estrangeiros, e a decisão de não monitorar a comunicação de chefes de Estado e de governo de nossos aliados e amigos próximos. Como o presidente disse, pessoas do mundo todo, independente de sua nacionalidade, devem saber que os Estados Unidos levam suas preocupações com privacidade em conta. Desde o anúncio do presidente, eu e a equipe de Segurança Nacional do presidente temos estado em contato com autoridades brasileiras para encontrar maneiras de aprofundar nossa cooperação e reconstruir a confiança de agora em diante.

Milhões de brasileiros visitam os Estados Unidos todos os anos e muitos acham que o Brasil deveria entrar para o Programa de Isenção de Vistos, como o Chile recentemente. O que ainda falta para isso acontecer?
O Brasil é atualmente o terceiro país do mundo com o maior número de vistos de não-imigrante, atrás do México e da China. Mais de dois milhões de brasileiros que visitaram os Estados Unidos em 2013 e os milhões que pretendemos receber este ano e nos próximos são uma importante parte das economias locais em lugares como Flórida, Nova York e Nevada. Ficamos entusiasmados com o crescimento de 15 por cento no número de brasileiros que visitaram os Estados Unidos em 2013. Espero que o número continue a crescer e gostaríamos de vê-los visitar e construir uma conexão mais forte com outras partes dos Estados Unidos também.

Em 2012, o presidente Obama viajou para a Disney World e prometeu que facilitaria o máximo que pudesse a viagem de brasileiros aos Estados Unidos. No mesmo ano, iniciamos um diálogo com autoridades brasileiras sobre o Programa de Isenção de Vistos. E, enquanto discutimos esse programa, continuamos a fazer todo o possível para que a promessa do presidente Obama seja cumprida.

Dobramos o número de cônsules do setor de vistos no Brasil, eliminamos entrevistas para solicitantes com menos de 16 e mais de 66 anos e em breve abriremos dois novos consulados, em Porto Alegre e em Belo Horizonte. Em 2011, um brasileiro levava em média 100 dias para agendar uma entrevista. Agora, leva apenas dois.

Claro que também precisamos que mais estudantes americanos aprendam português e visitem o Brasil!

Tanto o senhor, quanto o secretário de Estado, John Kerry, e o secretário de Energia, Ernesto Moniz, disseram recentemente que a relação Brasil-Estados Unidos deveria envolver energia. Mas com o forte crescimento da produção nos EUA do gás de xisto e com o fraturamento hidráulico, além de nenhuma empresa americana participou dos leilões do pré-sal no Brasil, como o Brasil pode ser importante neste campo? Que possibilidade de parceria o senhor vê?
O Brasil é um importante ator global em energia, de sua liderança na produção e uso de etanol e proliferação de postos e veículos flex no Brasil, à descoberta de reservas de petróleo e gás em águas profundas. Além disso, Estados Unidos e Brasil dividem uma série de objetivos e desafios comuns no setor de energia, incluindo o desenvolvimento de um mix energético diversificado - o que chamamos nos Estados Unidos de estratégia "todas as opções acima" - e a busca de maneiras de melhorar a eficiência energética e reduzir a prejudicial poluição de carbono em apoio às metas de mudança climática.

É óbvio que o potencial da cooperação Brasil-Estados Unidos em energia é grande. Desde a criação do Diálogo Estratégico sobre Energia Brasil - Estados Unidos (SED) em 2011, temos trabalhado em desafios importantes em energia e mudanças climáticas. Na verdade, o SED foi formado em cima de uma cooperação bilateral em bio-combustível, hidrocarboneto e energia nuclear civil, só para citar algumas que já existiam. Ou seja, nossa parceria em energia já tem alguns anos.

As empresas norte-americanas de petróleo têm sido ativas no setor de petróleo e gás em águas profundas no Brasil há muitos anos e a Petrobras tem um histórico de operações em águas profundas nos EUA. Essa é uma área que cada país pode contribuir com expertise e pode se beneficiar de engajamento bilateral técnico e comercial. O que temos aprendido com a parceria no SED é que empresas norte-americanas de serviços estão ávidas para explorar as oportunidades de parceria para o desenvolvimento de reservas de petróleo e gás no Brasil, incluindo as não-convencionais.

Além disso, Estados Unidos e Brasil aprenderam muitas lições que podem compartilhar sobre regulação e gerenciamento ambiental do desenvolvimento de hidrocarboneto, seja no ambiente em águas profundas ou no desenvolvimento de gás xisto. Uma produção eficiente, segura e confiável de petróleo e gás beneficia todos nós, e é por isso que o desenvolvimento de petróleo e gás continuará sendo uma parte importante de nosso engajamento bilateral. É por isso que o SED é tão importante e estamos na expectativa do próximo encontro. Será uma grande oportunidade para fazer progressos em nossa parceria em energia e explorar novas parcerias.


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