Folha de S. Paulo


História será mais bondosa ao julgar o governo da Índia, diz ministro

O governo indiano, que levou uma surra nas urnas na sexta (16), tem problemas de política econômica muito semelhantes aos do Brasil. A Índia custou a retirar uma série de estímulos ao consumo criados para amortecer os efeitos da crise de 2008 e hoje sofre com piora do deficit; enfrenta baixo crescimento (o que, na Índia, é 5%) e inflação em alta, acima de 8%; segurou os preços dos combustíveis e agora tenta reajustá-los.

É o que conta Montek Singh Ahluwalia, 70, ministro do Planejamento e braço direito do premiê Manmohan Singh, que está de saída. Abaixo, a íntegra da entrevista concedida à Folha em Nova Déli.

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Folha - Quais os principais desafios do próximo premiê?
Montek Ahluwalia - A economia está passando por uma fase de desaceleração. Parte disso reflete a desaceleração global dos emergentes. Mas muito se deve a limitações domésticas. Tivemos oito anos de alto crescimento, de cerca de 8%, e aí batemos em um limite. E isso aconteceu justamente quando a situação global era desfavorável.

Não podemos fazer nada a respeito da situação global, mas precisamos consertar nossos problemas domésticos. A avaliação do novo governo vai depender de quão rápido ele conseguirá levar a Índia de volta ao alto crescimento. As expectativas são altas, muita gente espera que nós voltemos rapidamente ao crescimento de 8%.

Pankaj Nangia/Bloomberg
Montek Ahluwalia, economista e ministro indiano
Montek Ahluwalia, economista e ministro indiano

Essa expectativa é realista?
Os fundamentos da Índia são fortes, temos uma alta taxa de poupança e investimento e um setor privado dinâmico. Mas quando há uma desaceleração, leva tempo para reverter a percepção dos investidores. Acho que, em um período de dois anos, 2014 e 2015, é possível levar o crescimento para acima de 7%. Neste ano espera-se um avanço do PIB de 5,4%. Muita gente estava esperando as eleições acabarem para ver quanta incerteza política haveria no novo governo. Esta eleição deu um mandato muito claro (grande maioria), então o novo governo pode reduzir a incerteza. Os investidores querem saber se a economia está em uma trajetória fiscal sustentável. O deficit do orçamente precisa estar em queda. No ano passado, o deficit caiu para 4,6% do PIB. Nosso objetivo é levá-lo para 3% do PIB em três anos.

Isso teria um efeito recessivo?
Não necessariamente. Precisamos estimular o investimento privado, e também público, mas não aquele que sai do orçamento. Se o novo governo seguir as diretrizes da Comissão de Planejamento, não irá cortar investimento, irá melhorar a arrecadação tributária e cortar subsídios. No fronte tributário, o óbvio a se fazer é aprovar o novo imposto sobre bens e serviços, que foi discutido exaustivamente. Hoje, a carga tributária na Índia é 18% do PIB. (no Brasil é 36%).

E a inflação?
Infelizmente, a inflação está alta, embora esteja caindo. O índice de preços ao consumidor está acima de 8%.

Você acha que os países dos Brics estão enfrentando uma crise meia idade, como foi discutido no Fórum Econômico Mundial deste ano?
Acho que isso não se aplica à Índia, porque isso significaria que nós passamos direto da adolescência para a crise de meia idade! Há uma discussão sobre a armadilha da renda média, mas isso só ocorre quando a renda per capita está em níveis muito mais elevados do que na Índia (segundo a teoria, quando o país ainda tem renda baixa, há muitos diferenciais de produtividade e pode-se aumentar bastante o uso do capital, e por isso é possível crescer muito rapidamente; quando o país atinge uma renda per capita média, é mais difícil crescer tao rapidamente, para isso é necessário fazer reformas institucionais). A renda per capita da Índia é US$ 1600 ou US$ 5 000 em paridade de poder de compra (ajustado pelo custo de vida de cada país, mais baixo em países mais pobres, em geral ). A armadilha da renda média só deveria ocorrer com renda próxima de US$ 10 mil. O Brasil atingiu esse nível em que há efeitos dessa crise de renda média, quando é necessário construir toda uma nova arquitetura de instituições para alcançar a produtividade dos países desenvolvidos. A Índia não está nessa situação. Nós temos problemas muito específicos, como tornar licitações mais transparentes, por exemplo, aperfeiçoar o sistema regulatório, coisas que já começamos a fazer.

O senhor acha que o governo que está de saída não será reconhecido pelo trabalho que fez para "limpar" o sistema e o próximo governo é que vai colher os frutos?
O primeiro-ministro Manmohan Singh deu a entender isso, quando disse que a história será mais bondosa ao julgá-lo do que a mídia de hoje.

A Índia tem uma lei de responsabilidade fiscal inspirada na brasileira. Está funcionando?
Esta lei existe há vários anos, mas sozinha não garante responsabilidade fiscal, porque ela só determina que o não cumprimento da meta fiscal precisa ser comunicado ao Parlamento e aceito. Infelizmente, no Parlamento, o não cumprimento da meta fiscal não causa controvérsia. Se algo inesperado acontece e a meta fiscal não é cumprida, não há punição automática. O Parlamento não apoia medidas duras para manter a meta fiscal, como cortar os subsídios para a energia, por exemplo.

A meta fiscal chegou a ser cumprida?
No começo do governo as metas fiscais foram cumpridas e o déficit do orçamento diminuiu. Mas quando veio a crise global de 2008, permitiram que o deficit do orçamento aumentasse porque a percepção era de que precisávamos de estímulo fiscal. O estímulo funcionou bem durante dois anos, mas deveríamos tê-lo retirado gradualmente. Isso não foi feito.

Tivemos uma situação semelhante no Brasil, onde uma série de medidas de estímulo ao consumo foi adotada após a crise e depois foi difícil eliminá-las e elas causaram piora do problema fiscal. É isso que ocorreu na Índia?
Sim, exatamente isso. No nosso caso, o aumento do deficit não foi principalmente por aumento de gastos do governo, mas sim reduções de impostos para estimular a demanda e um aumento nos subsídios, principalmente à energia. Se tivéssemos usado estímulos ao investimento, teria sido mais fácil retirá-los gradualmente.

Há uma grande discussão no Brasil hoje sobre como o governo manteve os preços da gasolina e diesel controlados, abaixo do preço mundial, e como isso prejudicou a Petrobras e outros setores.
Aqui é a mesma coisa. Quando a cotação do petróleo subiu, o governo não deixou que o preço dos derivados subisse no mercado doméstico. Parte da diferença veio de um subsídio vindo do orçamento, e o resto foi arcado pela empresa estatal de petróleo. Cerca de dois anos atrás, começamos a reajustar os preços internos, porque a situação era insustentável. Liberamos o preço da gasolina, que não é mais subsidiada. O diesel ainda tem preços abaixo do mercado internacional, mas está sendo gradualmente reajustado. Gás de cozinha ainda é pesadamente subsidiado para usuários individuais. E querosene, usado pelos pobres na zona rural para iluminação, também tem grandes subsídios.

Então agora a gasolina é vendida a preços semelhantes aos internacionais?
Sim, na verdade gasolina é até mais cara para o consumidor, por causa dos impostos.

Uma vez que as empresas de petróleo tiveram de arcar com a maior parte do custo, elas estão quebradas?
Elas estão obtendo menos lucros do que poderiam, se estivessem cobrando os preços normais. E isso causa uma redução no investimento em exploração de petróleo e desenvolvimento de novas áreas.

Qual foi a reação da população ao reajuste da gasolina?
Inicialmente, muito negativa, mas depois de alguns meses, as pessoas aceitaram.

E qual foi o impacto do reajuste de combustíveis na inflação?
Não há dúvida que o reajuste dos combustíveis teve grande impacto sobre a inflação nos últimos dois anos. E o impacto político de inflação mais alta é sempre negativo. É importante refletir, no entanto, que nos últimos dez anos houve ganho real de renda muito maior do que anteriormente, mas a inflação também era muito maior, e as pessoas veem isso de forma negativa. Mas elas não se dão conta de que, se realmente começarmos a combater a inflação, é possível que o crescimento real da renda vá desacelerar por um tempo. É difícil explicar isso para o público.

O Partido do Congresso acaba de perder nas eleições, e insatisfação com crescimento e preços altos foi um fator. A eliminação dos subsídios à energia teve um grande custo político?
Quando começou a ser implementada a eliminação dos subsídios, a maioria dos políticos disse que haveria um custo político enorme. Mas eles não levam em conta qual seria a consequência de não fazer isso. Se pudéssemos arcar com esse subsídio implícito, talvez tivéssemos mantido. Mas se deficit fiscal maior leva à perda de confiança dos investidores, que causa uma desvalorização da rúpia, isso também teria um enorme custo político.

O seu colega Raghuram Rajan (presidente do Banco Central indiano e ex-economista-chefe do FMI) afirmou recentemente que os países desenvolvidos deveriam prestar mais atenção aos efeitos de suas políticas de retirada de estímulos sobre os emergentes...
Ele está certíssimo. Nós todos vivemos em uma economia global cada vez mais integrada, ligada por fluxos de capital e comércio.

As economias maiores precisam levar em conta o impacto negativo de suas políticas. O G20, do qual Brasil, Índia e EUA fazem parte, abordou essa questão e se comprometeu a prestar atenção aos "vazamentos" da política monetária. Quando o grande problema era o superávit em conta corrente da China, houve pressão sobre o país para que os chineses valorizassem sua moeda. A mesma lógica se aplica aos EUA.

É preciso haver maior coordenação e consultas entre os bancos centrais para que não haja medidas súbitas. Os bancos centrais de países desenvolvidos argumentam que seu mandato não exige que se levem em conta efeitos da política monetária sobre outros países. A lei pode dizer isso, mas os mandatos precisam ser interpretados de forma construtiva.

Os Brics têm alguma coordenação entre eles para reagir à atual política de retirada de estímulos dos EUA?
Sim, temos posições semelhantes no G20. Se isso tem algum impacto, aí já é outro problema...

Você foi o primeiro chefe do Escritório Independente de Avaliação do FMI, espécie de ombudsman do Fundo, criado após a crise da Ásia dos anos 90. Você vê alguma semelhança entre a crise asiática e a situação atual?
A crise asiática afetou países da periferia que eram considerados exemplares e isso foi uma surpresa. Havia dúvidas sobre a maneira pela qual o Fundo lidou com a crise, alguns acharam que o FMI a tornou pior. Hoje em dia não temos uma crise que começou na periferia. Começou no coração do sistema financeiro global, mas a periferia é afetada. O FMI foi criticado por não ter detectado fragilidades na Ásia, e a mesma coisa é vale para a atual situação, o Fundo também deixou passar sinais de alerta. Mas ninguém critica o FMI da maneira que o criticaram na crise da Ásia. A periferia foi afetada, mas não fomos tão duramente impactados como os países industrializados. O Brasil desacelerou bastante. A China desacelereou mais ainda cresce 7,5%, e a Índia, que também diminuiu crescimento, ainda tem avanço do PIB de cerca de 5%.Só para comparar, a Europa cresce 1%. Mas o fato é que havia a impressão de que os emergentes iam muito bem, e de repente nos demos conta de que, se há um problema no coração do sistema, a periferia é afetada.

Então existe o famoso "decoupling" (desatrelar, emergentes não mais acompanham os ciclos dos industrializados)?
Ainda estamos conectados, mas não é mais o caso de os EUA pegarem uma gripe, e nós pneumonia. Quando os EUA pegam uma gripe, nós pegamos uma gripe.

A Índia "pulou" a fase de industrialização, isso não é um problema para um país que precisa gerar 1 milhão de empregos por mês?
A Índia não vai tão bem em indústria como deveria, já que precisamos criar um número crescente de empregos para as pessoas estão entrando agora no mercado de trabalho e aquelas que deixam a agricultura. A Índia é competitiva em indústria sofisticada, que não gera um grande número de empregos, gera empregos de qualidade. Mas não é competitiva em indústria de grande escala, roupas, sapatos, bens de consumo, que geram mais emprego. Vamos bem em serviços, principalmente aqueles que dependem de tecnologia da informação. Mas nós precisamos de uma onda de industrialização para gerar empregos.


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