Folha de S. Paulo


Pequim quer impulsionar parceria estratégica com o Brasil, diz chanceler chinês

A China quer "impulsionar" a parceria estratégica com o Brasil e aposta no grupo Brics (que conta ainda com Rússia, Índia e África do Sul) para promover relações internacionais mais "democratizadas".

Palavras do chanceler chinês, Wang Yi, que chega hoje para uma visita ao Brasil.

Em entrevista exclusiva, Wang falou sobre os 40 anos de relações diplomáticas entre os dois países e do principal evento desse aniversário, a visita ao Brasil do presidente chinês, Xi Jinping, marcada para julho.

Carlos Garcia Rawlins/Reuters
O chanceler chinês, Wang Yi, em visita a Cuba
O chanceler chinês, Wang Yi, em visita a Cuba

Só uma pergunta feita pela Folha não foi respondida, sobre a crescente tensão entre China e Japão.

A assessoria do ministro alegou que ele preferiu focar nas relações com a América Latina e em seu giro pela região, que começa no Brasil e inclui ainda Argentina, Venezuela e Cuba.
Leia a seguir a entrevista, concedida por email. A tradução para o português foi feita pelo governo chinês.

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Folha - Este ano marca os 40 anos de relações bilaterais. Qual a importância do Brasil na estratégia de política externa da China?
Wang Yi - Não obstante a longa distância geográfica entre a China e o Brasil, o intercâmbio e a amizade entre os dois povos remontam a datas antigas do século 16. Desde o estabelecimento das relações diplomáticas China-Brasil no dia 15 de agosto de 1974, os dois lados têm aderido aos princípios de respeito mútuo, igualdade e benefício recíproco e somado esforços para promover o desenvolvimento contínuo e saudável do relacionamento bilateral.

Em 1993, o Brasil tornou-se o primeiro país em desenvolvimento que estabeleceu a Parceria Estratégica com a China, a qual foi elevada para a Parceria Estratégica Global em 2012.
Atualmente, constatam-se frequentes contatos de alto nível e aprofundamento constante da confiança política mútua entre a China e o Brasil. No ano passado, o presidente Xi Jinping e a presidenta Dilma Rousseff reuniram-se duas vezes à margem de eventos multilaterais e chegaram a consensos importantes sobre o aprofundamento abrangente do relacionamento bilateral.

Os dois países, mutuamente importantes parceiros e com oportunidades de desenvolvimento, têm obtido resultados frutíferos da sua cooperação de benefício recíproco nas áreas de comércio, recursos naturais, energia, agricultura, finanças, indústria manufatureira e construção de infra-estrutura.O intercâmbio entre os povos tem sido rico e ativo, enquanto a coordenação estratégica em assuntos internacionais e regionais intensifica-se a cada dia. Pode-se dizer que o relacionamento China-Brasil já transcendeu a dimensão bilateral, cuja influência estratégica e global vem aumentando incessantemente.

Sinto grande satisfação em visitar o Brasil na véspera do 40º aniversário das relações diplomáticas entre a China e o Brasil, momento de especial sentido comemorativo. A minha visita tem por objetivo intensificar a consulta estratégica, promover a cooperação em todas as áreas e aprofundar o intercâmbio entre os dois ministérios das relações exteriores. O Brasil é neste momento o único país latino-americano e caribenho que mantém o mecanismo de Diálogo Estratégico Global a nível de chanceler com a China. Durante a minha visita, vou co-presidir com o chanceler Figueiredo Machado o primeiro diálogo estratégico global, com expectativa de incrementar a confiança estratégica mútua, ampliar consenso estratégico e estreitar coordenação estratégica por meio desta plataforma nova.

O presidente Xi Jinping planeja realizar, no próximo mês de julho, visita de Estado ao Brasil e alguns países latino-americanos e caribenhos, e participar da VI Cúpula do Brics. Uma importante missão que tenho na presente visita é fazer preparações políticas para a visita do Presidente Xi. Estou convicto de que a visita do presidente Xi irá, sem sombra de dúvida, impulsionar vigorosamente o desenvolvimento da Parceria Estratégica Global China-Brasil e constituirá um novo marco na história do relacionamento sino-brasileiro.

O sr. afirmou recentemente que a China e a América Latina tem uma "oportunidade histórica" de avançar para "o próximo estágio". O que isso significa?
A China e os países da América Latina e Caribe constituem uma parte importante do mundo em desenvolvimento e da força emergente internacional. Graças a esforços de ambas as partes, as relações e cooperações entre a China e a América Latina e Caribe têm progredido a passos largos nos últimos anos, trazendo benefícios tangíveis aos nossos povos.
O governo chinês atribui alta importância ao desenvolvimento das relações entre a China e a América Latina e Caribe. Está previsto o estabelecimento do Fórum China-Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (Celac) e a realização da sua primeira reunião ministerial no ano corrente. Daí que as relações China-América Latina e Caribe tem uma oportunidade importante de ficar ainda melhor.

De olhos postos no futuro, a China está disposta a trabalhar juntamente com os países da América Latina e Caribe para aprofundar a confiança mútua e trocar compreensão e apoio nas questões que envolvem os interesses essenciais e preocupações fundamentais no âmbito político; na área econômica, explorar o potencial de cooperação, inovar o modo de cooperação e aprofundar a integração de interesses; no campo humanístico, reforçar o intercâmbio e a aprendizagem mútua, com vistas a promover a coexistência harmoniosa entre civilizações diferentes; quanto à cooperação integral, aproveitar bem a nova plataforma importante de Fórum China-Celac no sentido de tornar realidade a complementaridade de vantagens; e reforçar coordenação e colaboração ao tratar de assuntos internacionais em prol de interesses integrais de ambos os lados e de todos os países em desenvolvimento.

De qualquer maneira, o desenvolvimento da parceria de cooperação integral China-América Latina e Caribe em base de igualdade, benefício recíproco e desenvolvimento comum, não apenas corresponde aos interesses de ambas as partes, como também contribui para a paz, estabilidade e desenvolvimento das duas regiões e do mundo.

O comércio China-Brasil bateu recorde no ano passado, com alta de 10%, mas é uma relação qualitativamente desequilibrada: a China vende principalmente produtos manufaturados e o Brasil matérias-primas. O que espera desse fluxo?
Ao longo dos últimos anos, a China e o Brasil têm realizado ativamente cooperações em diversas áreas à luz de princípios de igualdade, benefício mútuo e ganhos compartilhados, e alcançaram resultados frutíferos. Segundo as estatísticas da parte chinesa, o fluxo comercial entre a China e o Brasil cresceu 5,3% em 2013, ultrapassando pela primeira vez US$ 90 bilhões, um desempenho já bastante plausível num contexto marcado pela difícil recuperação econômica global e desaceleração do crescimento das economias emergentes. O Brasil já é o 9º maior parceiro comercial da China e a China, por sua vez, tem sido o maior parceiro comercial do Brasil por cinco anos consecutivos. A par disso, é também exitosa a cooperação nas áreas de recursos naturais, energia, agricultura, finanças, indústria manufatureira e construção de infra-estrutura. A cooperação econômico-comercial entre a China e o Brasil trouxe benefícios tangíveis aos dois povos.

A China e o Brasil são respectivamente o maior país em desenvolvimento no hemisfério leste e oeste. Perante o atual cenário econômico e financeiro internacional, os dois lados devem reforçar ainda mais intercâmbio e cooperação, explorar as vantagens complementares de forma aprofundada, e identificar pontos de convergência e prioridades de ação, de acordo com as suas estratégias de desenvolvimento, de modo a elevar a qualidade e quantidade da cooperação de benefício mútuo, e melhor contribuir para a recuperação, estabilidade e desenvolvimento da economia mundial.

Qual é o significado estratégico do Brics para a China?
Os países Brics representam 29,4% do território e 42,3% da população mundial, enquanto o seu PIB ocupará em 2014, conforme a última estimativa do Fundo Monetário Internacional, 21,7% do PIB mundial. Os cinco países localizam-se respectivamente na Ásia, África, Europa e América, são todos líderes econômicos da sua região ou sub-região, membros do G20, bem como participantes centrais da Rodada Doha da Organização Mundial do Comércio (OMC), além de integrantes relevantes do Conselho de Estabilidade Financeira (FSB na sigla em inglês) - a instituição formuladora de padrões financeiras internacionais, para já não dizer do seu papel saliente nos mecanismos de cooperação Sul-Sul como o Grupo dos 77+China e o BASIC (Brasil, África do Sul e China).

Mesmo jovem, o Brics já dispõe de uma cooperação cada vez mais abrangente. Intensificando a cooperação prática em dezenas de áreas, os membros mantém coordenações e consultas políticas no plano político e de segurança, e diálogos e cooperação no econômico e de desenvolvimento. A par disso, o mecanismo Brics vem se maturando, formando um quadro de cooperação orientado pela Cúpula dos Líderes e suportado pelas reuniões dos ministros e pelas cooperações práticas em todas as esferas. Simultaneamente, todos os países Brics estão no ciclo de promover desenvolvimento econômico, têm necessidade de impulsionar reajuste estratégico da sua estrutura econômica, bem como transformação da sua sociedade e inovação da sua ciência e tecnologia, salva as de intensificar a referência e aprendizagem mútua. No campo econômico-comercial e de investimento, os países gozam de grande complementaridade e ainda têm muitos campos novos para explorar. Analisados em termos de estratégia de desenvolvimento econômico de longo prazo, todos os países do Brics valorizam muito tanto o desenvolvimento das indústrias básicas, quanto a promoção de educação, ciência e tecnologia, ao lado da intensificação de investimento ao recurso humano e ao bem-estar do povo, fato que revela o enorme potencial da cooperação Brics e sua ampla perspectiva.

A China tem sempre sido um apoiador firme e participante construtivo da cooperação Brics. Na 3ª Cúpula do Brics realizada pela China em março de 2011, promovemos a aprovação da Declaração de Sanya enquanto os projetos de cooperação, pela primeira vez, foram determinados na forma de plano de ação, lançando assim um bom alicerce para a ampliação e o aprofundamento da cooperação do Brics. A parte chinesa propôs estabelecer a Parceria Econômica Mais Estreita do Brics, que poderá servir como apoio e complemento profícuo para o Diálogo Norte-Sul e a Cooperação Sul-Sul e facilitar a formação de uma posição comum e emissão da voz única nos assuntos internacionais, fazendo com que a economia mundial ser mais equilibrada, a governança global mais aperfeiçoada e relações internacionais mais democratizadas.

Como o estabelecimento do Banco de Desenvolvimento do Brics [que deve ser criado na cúpula de Fortaleza, em julho] contribuirá para as relações econômico-comerciais intra-Brics e entre Brics e outros países?
A criação do Banco de Desenvolvimento constitui um componente importante da cooperação financeira do Brics, refletindo a determinação e a confiança dos líderes do Brics em aprofundar a cooperação pragmática. No contexto em que a atual recuperação da economia mundial enfrenta diversos elementos incertos, o estabelecimento do Banco de Desenvolvimento é favorável para os Brics elevar a sua capacidade de resistir aos riscos, construir a sua própria rede de segurança financeira e conjugar esforços para fazer face aos riscos, além de formar um suporte consistente para o desenvolvimento dos próprios Brics e outros países de mercado emergente e em desenvolvimento.

As regras de procedimento e o mecanismo de tomada da decisão do Banco de Desenvolvimento do Brics serão determinados de forma por conta dos membros do bloco, o que combina melhor com os interesses dos países de mercado emergente e em desenvolvimento do que as regras existentes de outras instituições financeiras internacionais. Sendo a primeira importante instituição financeira internacional fundada por países de mercado emergente após a Segunda Guerra Mundial, o Banco desempenhará um papel catalítico na reforma da governança econômica global e contribuirá para a elevação da representatividade e direito à voz dos países de mercado emergente e em desenvolvimento e tem um significado profundo e de longo alcance. A parte chinesa apoia o estabelecimento do Banco de Desenvolvimento do Brics, e deseja concertar esforços junto com outros membros do bloco para promover a cooperação financeira do Brics a obter mais frutos positivos.

China e Brasil defendem a reforma das instituições multilaterais. Qual é a preocupação principal da China neste aspecto?
Nos últimos anos, com o rápido desenvolvimento econômico, um número expressivo de países de mercado emergente e em desenvolvimento têm se tornado na força importante na salvaguarda da paz mundial e promoção do desenvolvimento comum, e têm desempenhado um papel importante em enfrentar a crise financeira internacional e impulsionar o crescimento econômico global. Isto corresponde à corrente da época caracterizada pela paz, desenvolvimento, cooperação e ganhos compartilhados. Ao mesmo tempo, sendo a organização internacional intergovernamental mais generalizada no mundo de hoje, a ONU, ao longo de quase 70 anos desde sua fundação, cresceu de 51 membros para 193, a maioria dos quais são países em desenvolvimento. Neste sentido, as instituições multilaterais, inclusive a ONU, devem realizar a reforma com intuito de aumentar a representatividade e o direito à voz dos países em desenvolvimento.

Estamos na expectativa de aperfeiçoar ainda mais as instituições e organizações multilaterais, incluindo a ONU, junto com outros países em desenvolvimento, como o Brasil, para os quais desempenhar em conjunto um papel maior e mais importante nos assuntos internacionais.

O novo governo da China está no poder há um ano. Como define as principais linhas de sua política externa?
Ao longo do último ano, com base na herança e desenvolvimento das boas tradições diplomáticas chinesas, o presidente Xi Jinping e outros líderes da China têm proposto uma séria de novos conceitos diplomáticos em conformidade com o decorrer do tempo, com o objetivo de promover mais ativamente a transformação mútua das oportunidades chinesas e mundiais e o desempenho do papel dum grande país responsável nos assuntos internacionais. O objetivo destas importantes inovações das teorias e práticas diplomáticas é, na minha interpretação, explorar um caminho diplomático de um grande país com caraterística chinesa.

Propusemos a construção de um novo modelo de relações entre grandes países, procurando na era moderna um novo caminho caraterizado por cooperação, ganhos compartilhados e benefícios comuns, quebrando a fatalidade histórica de conflitos e confrontação entre países emergentes e já desenvolvidos. Propusemos o estabelecimento de uma visão correta sobre moralidade e benefícios, dedicando-nos à insistência na moralidade no contato com países em desenvolvimento, em prol de salvaguardar de forma melhor direitos justos e demandas razoáveis dos países em desenvolvimento. Propusemos o conceito diplomático com países vizinhos caracterizado por cordialidade, sinceridade, benefício mútuo e inclusividade, dedicando-nos a demonstrar ainda mais a sinceridade e boa fé da China aos países vizinhos, com os quais desejamos construir uma comunidade de destino comum. Propusemos o impulso ao respeito mútuo e convivência harmoniosa entre diferentes civilizações, fazendo com que comunicação e intercâmbio se tornem pontes para consolidação da amizade e todos povos, motores para o avanço da comunidade do ser humano e laços para salvaguarda da paz mundial.

Através esses novos conceitos, a China passa para o mundo sua crença de que a China não só insiste no caminho do desenvolvimento pacífico por conta própria, mas também gostaria de percorrer nesse caminho junto com todos os países do mundo. O Sonho Chinês não é só uma procura do povo chinês, mas também interligado intimamente com sonhos de todos os povos de procurar uma vida melhor.

O que tira o sono do chanceler da China?
A diplomacia da China valoriza moralidade e justiça, não hesita em assumir responsabilidade e honra suas palavras. Nossos trabalhos conseguiram compreensão e apoio do povo chinês e da maioria dos países no mundo. Sendo diplomata da china, sinto-me tranquilo e tenho plena autoconfiança.

Claro, como a China é um grande país em desenvolvimento, a nossa diplomacia encara vários desafios, e a comunidade internacional deseja a China desempenhar um papel maior em resolver questões globais. As questões relacionadas aos interesses fundamentais nacionais tais como a soberania territorial, os temas candentes que ameaça paz e segurança regional, e os casos emergentes ligados aos interesses legítimos de cidadãos e empresas chineses no exterior, tocam os nervos meus e dos meus colegas. A diplomacia chinesa tem que enfrentar e resolver questões com vistas promover os interesses comuns dos povos da China e de todos os países do mundo, e concretizar a paz e prosperidade mundial.


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