Folha de S. Paulo


Análise: Interesses são muito altos para se punir Moscou

A rebelião que derrubou o presidente Viktor Yanukovich na Ucrânia converteu-se em uma derrota estratégica da Rússia e um fracasso para seu líder, Vladimir Putin.

A reação de Moscou aos acontecimentos coloca um claro ponto final no interregno de parceria e cooperação entre o Ocidente e a Rússia que prevaleceu, de modo geral, no quarto de século que se seguiu à Guerra Fria.

Quando todos os meios fracassaram, Moscou decidiu intervir para reafirmar sua esfera de influência e demonstrar sua força, não apenas para a Ucrânia, mas para todo o seu "exterior próximo" e, obviamente, para o Ocidente. Essa decisão pode ter consequências enormes para o novo equilíbrio de poder.

Desde a queda da URSS, em 1991, a região se fragmentou e decaiu. O desmantelamento do império vermelho –"a maior tragédia do século 20", nas palavras de Putin– deixou cerca de 25 milhões de russos nas repúblicas pós-soviéticas.

Na década de 90, a Rússia passou por um período sombrio de "caos e democracia", como os tempos do presidente Boris Ieltsin são vistos pela grande maioria dos russos.

Essa década é comparada a outro período profundamente enraizado na psique russa: o chamado "tempo de turbulência", que caracterizou o caos político e econômico do início do século 17.

Em 2000, Putin assumiu, com a meta de reafirmar a influência russa na área pós- soviética. Suas relações com o Ocidente começaram a se deteriorar.

A guerra do Iraque (2003) e a independência de Kosovo (2008), entre outros episódios, reforçaram a convicção do Kremlin de que há um jogo brutal em curso e que o Ocidente quer ampliar sua zona de influência às custas da Rússia. O objetivo último seria destruir o país e explorar seus recursos, e as ferramentas para alcançar o objetivo seriam o liberalismo, a democracia e os direitos humanos.

As instituições que lidam com esses temas passaram a ser vistas como agências de espionagem ocidentais.

Com seu potencial histórico, espiritual, cultural, demográfico e econômico, a Ucrânia é a parte mais importante do "exterior próximo" da Rússia. Boa parte dos russos não vê a Ucrânia como um país no sentido estrito do termo, mas como território que compartilha um espaço político e cultural comum.

A manutenção da Ucrânia em sua área de interesse exclusiva tem sido um objetivo prioritário da Rússia. O sonho europeu expresso pelas multidões na praça da Independência de Kiev foi uma ameaça a esse plano.

A Crimeia está funcionando como "enclave" que limita a capacidade ucraniana na política externa e doméstica, reduzindo sua capacidade de ingressar na União Europeia e na Otan.
A Rússia não teve medo de encarar um confronto político com o Ocidente.

O risco de algumas sanções políticas e econômicas limitadas com certeza já estava previsto nos cálculos de Moscou, mas era acompanhado pela forte convicção de que a crise será seguida pelo retorno à cooperação pragmática.

Os interesses em jogo são altos demais. A Rússia é a maior fonte de energia para vários países da UE, um destino perfeito de exportações em tempos difíceis de crise econômica, e, como membro permanente do Conselho de Segurança da ONU, exerce papel vital na Síria e no Irã.

A partida chegou a um impasse no tabuleiro ucraniano, mas as peças de Putin são mais numerosas e, provavelmente, mais determinadas.

JAREK M. DOMANSKI, pesquisador em Harvard, é ex-chefe de missões de observadores eleitorais da UE na Ucrânia


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