Folha de S. Paulo


Atrocidade na guerra síria reflete estratégia, diz analista

Os massacres de civis, execuções sanguinárias e tortura generalizada que caracterizam a guerra síria não são fruto de uma barbárie irracional, mas de um plano ideológico conscientemente orquestrado pelos beligerantes, segundo um dos principais estudiosos de guerras civis.

Stathis Kalyvas, cientista politico de Yale e autor de um clássico sobre o tema ("The Logic of Violence in Civil War", 2006, Cambridge), disse em entrevista à Folha, por e-mail, que tanto o governo sírio como rebeldes semeiam atrocidades como forma de endurecer as populações a seu favor.

Kalyvas afirmou ainda que uma das razões chave para explicar a resistência do ditador Bashar Al Assad a tanta pressão é o inegável apoio popular –mas o analista ressalta que esse apoio reflete mais instinto de autosobrevivência das minorias do que amor sincero pelo regime.

O especialista afirmou que esta é uma guerra difícil de vender para as opiniões públicas ocidentais pela fato de os dois lados serem vistos como maus.

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Com tanta interferência externa, o conflito sírio ainda pode ser chamado de guerra civil?

É difícil existir guerra civil sem envolvimento externo. É evidente que a escala deste envolvimento externo varia, e a Síria certamente está num nível avançado de interferência, mas isso ocorreu com outros conflitos que chamamos de guerra civil, como na Espanha e no Congo.

O conflito sírio tornou-se uma guerra étnico-sectária?

A dimensão étnico-sectária se tornou muito pronunciada, mas, por duas razões, seria um erro reduzir o conflito unicamente a esse aspecto. Primeiro, o fato de a maioria dos integrantes das facções se alinharem com uma ou outra parte beligerante não significa que o façam por vontade própria.

Segundo, há uma outra linha de fratura que vai além das clivagens sectárias. Me refiro a disputas ideológicas. Conflitos dentro do campo oposicionista refletem essa dimensão.

O senhor defende em livros a tese de que atrocidades em larga escala em guerras civis nem sempre são fruto de uma barbárie irracional, mas reflexo de uma estratégia consciente e deliberada por parte dos beligerantes. Isso se aplica à Síria?

Há muitas razões por trás das atrocidades cometidas numa guerra civil. Às vezes é reflexo de emoções individuais, como vingança. Mas também podem ser parte de uma estratégia. Pelo fato de a violência servir para endurecer posições das populações, ela pode ser usada para atingir esse objetivo.

Não reduziria a violência do conflito a uma estratégia consciente e unidirecional por parte dos beligerantes, mas o vínculo entre violência e polarização é bastante conhecido, e eu tenho certeza que ele está sendo utilizado com esse intuito [no conflito sírio].

O fato de Bashar al-Assad resistir tanto se deve, ao menos parcialmente, à sua base de apoio popular?

Está claro que Assad se beneficia de uma dose de apoio popular, principalmente por parte das minorias que se sentem ameaçadas por uma possível vitória oposicionista. Também está claro que ele conseguiu até agora administrar o conflito de maneira que lhe permitiu maximizar esse apoio.

Há sinais de que a simpatia pelos rebeldes foi redirecionado em favor de Assad?

Não está claro. Com certeza há segmentos da oposição que ficaram desiludidos com o processo de radicalização. Mas isso não significa que eles mudaram ou planejem mudar de lado.

O que faz do conflito sírio uma guerra civil como qualquer outra? E quais são suas peculiaridades?

O fato de a sociedade estar rachada, de a recompensa ao vencedor ser o controle do país e de a violência jogar vizinhos uns contra os outros são elementos semelhantes aos de outras guerras civis. Violência excessiva, interferências externas, radicalização e polarização também podem ser encontrados em outros conflitos internos.

Talvez o único fator novo seja a escala da cobertura do conflito devido ao surgimento de novas tecnologias, principalmente telefones celulares com câmeras e acesso a internet. Nessa ótica, o conflito sírio pode antecipar como serão futuros conflitos.

Até que ponto as potências ocidentais levam em conta suas opiniões públicas nos cálculos acerca do conflito sírio?

De maneira modesta. A opinião pública ocidental é hostil tanto ao regime sírio quando aos jihadistas oposicionistas. É difícil retratar essa guerra como um conflito entre o bem e o mal. Por outro lado, a escala do sofrimento da população não pode ser ignorado.

O nível da violência no conflito é uma prova de que a imagem de coexistência pacífica entre etnias e religiões na sociedade síria antes da guerra era uma falácia?

Esta é uma premissa totalmente equivocada. O fato de uma sociedade se tornar violentamente polarizada não significa que esse processo era inevitável. Com frequência, é o resultado de uma lógica de escalada da própria violência.

Uma vez que a violência começa, ela é capaz de deflagrar esse tipo de resultado. É por isso que a prevenção é tão importante. Também sabemos, graças a estudos comparativos, que sociedades que racharam com muita violência são capazes de voltar à coexistência pacífica. Basta ver o que é a Espanha hoje.

Há guerras mais atrozes que outras?

Guerras civis são guerras, portanto, violentas por definição. Há, porém, fatores que aumentam o nível de violência de alguns conflitos comparados com outros. Um desses fatores óbvios é a duração. Outros são a escala e intensidade dos combates.

A guerra síria é travada de forma convencional, com proliferação de armamentos e combates frontais. A combinação de guerra convencional em cenários essencialmente urbanos com divisões étnicas e sectárias é um fator capaz de acirrar a violência.

Mas é importante ressaltar que a violência nesse conflito está longe de ser excepcional e não deve ser interpretada como reflexo tendências inerentes à sociedade síria.


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