Folha de S. Paulo


Reforma da NSA proposta por Obama é 'cosmética', diz James Bamford

As mudanças na espionagem americana anunciadas pelo presidente Barack Obama são apenas "cosméticas" e os países espionados "deveriam continuar muito preocupados".
Quem diz isso é um dos maiores especialistas externos da Agência Nacional de Segurança (NSA), o jornalista James Bamford, 67, que há mais de 30 anos estuda a agência.

Ex-analista de inteligência da Marinha americana e ex-professor-visitante da Universidada da California-Berkeley, ele escreveu três best-sellers sobre a NSA, o primeiro publicado sobre a agência em 1982. A trilogia serviu de base a um seriado sobre a agência, que foi indicado ao Emmy, o Oscar da TV americana.

Para ele, a agência foi um "gorila enjaulado" por quase trinta anos, mas que se tornou "livre para fazer o que quiser desde os atentados de 2001". Leia trechos da entrevista que ele concedeu à Folha:

*Folha - O que o sr. espera que mude nos sistemas de espionagem da NSA?
James Bamford -* As mudanças na espionagem americana anunciadas por Obama são apenas cosméticas. Ele transferiu a responsabilidade para as mesmas pessoas que deixaram a agência livre para fazer o que quiser: os chefes da inteligência, o Departamento de Justiça e o Congresso. Das 46 recomendações de mudanças feitas pela comissão independente nomeada pelo próprio Obama, o discurso só mencionou seis. Não vai mudar nada.

Folha - A NSA sempre foi poderosa desse jeito?
A NSA era como um gorila enjaulado. Sempre foi enorme, com um grande orçamento e espionou todo mundo, desde os anos 50, sem leis que a freassem. Mas em 1975, por conta da chamada Comissão Church, no Congresso, que investigou seus abusos e criou a FISA, o tribunal secreto que a controlava. Mas, depois dos atentados de 2001, o governo Bush deixou de lado a FISA e aumentou o poder da NSA. A agência ficou fora de controle na última década.

Folha - As grandes companhias de tecnologia do Vale do Silício são cúmplices da NSA ou são obrigadas a cooperar?
No braço de ferro entre o Vale do Silício e os militares e os espiões, estes levaram a melhor. As empresas de tecnologia precisam cooperar, com ordens secretas, liminares secretas de um tribunal secreto. E têm seus servidores invadidos pela espionagem, que ainda tenta quebrar os códigos das senhas. O Vale do Silício vai precisar fazer muito mais lobby, já que está perdendo muito dinheiro. Quem vai comprar softwares americanos, sabendo que eles têm uma porta dos fundos que dá na agência de espionagem?

Folha - Mas Obama disse que todo mundo espiona e que só os EUA estão sendo julgados. O colunista Fareed Zakaria, da Time e da CNN, escreveu que os EUA sofrem ataques de hackers diariamente e que a espionagem é fundamental para a segurança do país. O sr. concorda?
Certa espionagem é necessária e eu não reclamaria de espionarmos a Coreia do Norte ou a China, mas espionar aliados? A Petrobras? Isso não.
Todos os países gostariam de espionar uns aos outros, e diversos adorariam espionar a Casa Branca, mas essa comparação é falaciosa. As nove maiores empresas de tecnologia do mundo estão nos EUA. Um telefonema entre Bangkok e Vientiane, no Laos, provavelmente vai passar por algum cabo nos EUA. Não dá para comparar com o que outros países fazem.

Folha - Pelas suas pesquisas, que atentados a NSA conseguiu evitar? Deputados insinuam que vários.
Nem o atentado frustrado de Times Square, nem o de Boston foram descobertos pela NSA. Há um único caso descoberto, de um taxista em San Diego que transferiu dinheiro para a Somália. Não justifica que gastemos US$ 10 bilhões por ano com isso.

Folha - Obama foi mesmo pego de surpresa pela espionagem do celular da chanceler alemã, Angela Merkel?
A NSA nunca escreveu em um memo ao presidente Obama, "olha, conseguimos grampear o celular da Merkel". Isso não aconteceu. Mas toda manhã, Obama recebe os relatórios da inteligência, papéis bastante detalhados. Principalmente, antes de se encontrar com o ministro das Relações Exteriores da Alemanha, com o embaixador alemão. Ele ficou constrangido com a revelação, por que não suspeitou o que eles andavam fazendo?

Folha - O Brasil conseguiria se proteger dessa espionagem ou é quase impossível?
Nenhum governo sozinho vai conseguir driblar a espionagem americana. Só coletivamente, já que é o mesmo problema. Admiro a reação do governo brasileiro, mas a resposta precisa ser tecnológica. Achar soluções e ser menos dependente dos americanos.

Folha - A opinião pública americana parece não dar muita atenção para o tema e uma maioria quer que Snowden seja julgado. A segurança nacional ainda está acima de tudo?
Vivemos uma era de exibicionismo digital, então a preocupação com a privacidade é menor do que nunca, e a maioria dos americanos não parece estar preocupada com a vigilância. Há uma crença forte aqui que o governo é benévolo e apenas quer nos proteger. É uma atitude ingênua, mas que permitiu as guerras do Vietnã e do Iraque. Éramos o bem contra o mal.

Folha - Então o efeito das denúncias de Snowden é limitado?
Daniel Ellsberg, que revelou os papéis do Pentágono, era um analista militar que defendia a guerra do Vietnã. Chelsea Manning [ex-Bradley] se alistou para lutar no Iraque. Os delatores podem ter má fama, mas estavam dentro do sistema, não gostaram do que viram e se rebelaram. Imagina quantas vidas não teriam sido salvas se um delator revelasse antes da invasão do Iraque que aqueles documentos da inteligência eram errados ou mentirosos? O efeito é maior do que parece.

Folha - Obama apenas herdou o legado de Bush?
Obama aceitou os pedidos dos militares e dos seus serviços de inteligência. Aumentou tropas no Afeganistão, aumentou o orçamento da CIA, permitiu a expansão do uso de drones pela CIA. Não reduziu o legado de Bush.


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