Folha de S. Paulo


Análise: Embate entre grupos causa erosão do delicado equilíbrio político no Líbano

A tragédia da guerra civil está por se repetir no Líbano. O nível de tensão social é dramático e o país está à beira da catástrofe. A sociedade libanesa está dividida em dois polos políticos: um gira em torno de uma aliança ocidental-saudita; outro circunda a órbita sírio-iraniana. Definitivamente, o conflito da Síria transbordou para o Líbano e o desafio é estancar sua propulsão.

Historicamente, a paz social no Líbano sempre foi consubstanciada na lógica de que as tendências políticas do cristianismo e do islamismo devem ser contempladas, proporcionalmente, para assegurar a paz e a ordem sociorreligiosa no país. Os acordos de Taif, firmados na Arábia Saudita no início dos anos 1990, construíram novas fundações e forjaram um moderno Contrato Social, dando fim a 15 anos de guerra civil e consolidando o entendimento de que governos de coalizão nacional sempre seriam a alternativa de salvação da nação.

Entretanto, desde o assassinato do ex-primeiro-ministro Rafik Hariri, em 2005, o país viu a acentuação do antagonismo político, o que hoje está levando à erosão do tênue equilíbrio sectário do país. A clivagem religiosa ganhou robustez incomensurável e o resultado foi o rompimento do Pacto Nacional e o surgimento de dois blocos extremistas no cenário político libanês: o Movimento 8 de Março e o Movimento 14 de Março.

A aliança de 8 de Março é composta pelos partidos cristãos maronitas Brigadas Marada e Movimento Patriótico Livre, principal partido cristão e dono da maior bancada parlamentar, pelos partidos muçulmanos xiitas Amal e Hizbullah, pelo Partido Democrático Libanês da seita muçulmana drusa e de tradicionais lideranças de muçulmanos sunitas.

Já a coalizão de 14 de Março é formada pelo Partido Futuro, de Saad Hariri, dono de uma respeitável maioria entre os muçulmanos sunitas, pelos cristãos maronitas do Partido Falangista e do Partido das Forças Libanesas, pelo partido cristão-ortodoxo Movimento Murr e de pequeno grupo de famílias xiitas de baixa densidade eleitoral.

Ainda dividem-se entre as duas coalizões políticas, partidos minoritários de cristãos católicos, armênios e o sui generis caso do Partido Progressista Socialista do líder druso Walid Jumblat, que se transformou no poder moderador e no fiel da balança, apesar de sua pequena envergadura parlamentar, jogando uma política pendular entre os dois movimentos.

No Líbano, a confusão político-religiosa não permite o delineamento de eixos ideológicos claros, mas grosso-modo a coalizão 8 de Março está mais à esquerda enquanto a coalizão 14 de Março tende à direita.

Contudo, o acirramento da confrontação política emana de quatro contextos: o Tribunal Especial das Nações Unidas, encarregado de investigar a morte do ex-premiê Rafik Hariri; a guerra contra Israel em 2006; o embate regional saudita-iraniano; o conflito armado na Síria e o envolvimentos de diversos grupos libaneses.

Na percepção da coalizão 14 de Março, a independência e a paz social no Líbano edificam-se na deposição da resistência nacionalista contra Israel e no rompimento do alinhamento político com a Síria e o Irã. O grupo postula uma aliança com a Arábia Saudita, a Europa e os EUA, que possibilitaria, supostamente, a restauração da ordem, da estabilidade e do progresso ao país.

Por outro lado, a concepção da aliança de 8 de Março está consubstanciada na tese de que a soberania e a autodeterminação libanesas somente existirão se a resistência armada se mantiver ativa até que Israel desocupe as fazendas de Shebaa e uma parte da cidade de Ghajar - no sul do país. Para esse grupo, as alianças com sírios e iranianos são estratégicas para contrapor o domínio israelense na região, uma vez que o obsoleto exército libanês não é capaz de confrontar a armada hebraica. O Movimento vê na contenção da influência ocidental-saudita os pilares da estabilidade, da união e do desenvolvimento do Líbano, além da preservação do Pacto Nacional.

A discrepância entre essas duas visões arremessaram o país, desde 2006, em consecutivos impasses constitucionais. Tudo indica ainda, que o cenário político se deteriorará ao término do mandato do atual presidente Michel Suleiman, em maio próximo. A falta de entendimento levará, aparentemente, à formação de um governo "fait accompli" sem legitimidade ou à escolha do comandante do exército como presidente da república - a exemplo do anterior e do atual presidentes que vieram do quadro das forças armadas -, resultado da falta de entendimento sobre a escolha de um mandatário civil pelo parlamento.

Os movimentos 14 de Março e 8 de Março sabem que estão num jogo em que não haverá vencedores. O resultado desse embate está impondo ao país fraturas sociorreligiosas de consequências imprevisíveis. A tendência desse confronto pode levar a sociedade libanesa a mergulhar num longo período de acefalia governamental que empurrará o país rumo ao precipício.

Os seis atentados terroristas que ceifaram a vida de dezenas de inocentes e de algumas autoridades políticas, nos últimos cinco meses, são inferências, sobretudo, do colapso da unidade governamental e da coesão sectária. O Líbano converteu-se numa arena aberta de disputas entre iranianos e sauditas; pró-regime sírio e anti-regime sírio; grupos salafistas e Hizbullah. A desordem política e de segurança transformaram o país no habitat propício de diversos grupos radicais islâmicos vinculados às mais variadas agremiações terroristas da região.

Para além da conjuntura interna, a solução do problema libanês está intrinsecamente conexa ao arcabouço de impasses macrorregionais entre o eixos euro-americano-saudita versus o russo-sírio-iraniano. A hipótese de um conflito civil no Líbano não deve ser descartada e o seu impacto será profundo na já deteriorada ordem geopolítica do Oriente Médio - impactadas ainda pelo incógnito fechamento do cenário sírio.

HUSSEIN ALI KALOUT é cientista político, especialista em Oriente Médio e pesquisador da Universidade Harvard


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