Folha de S. Paulo


Crise na Turquia começa após briga entre premiê e pregador islâmico

A crise política turca foi desencadeada por um escândalo político e financeiro, mas, na prática, ela pode ser explicada pelo enfrentamento entre o primeiro-ministro turco, o conservador islâmico Recep Tayyip Erdogan, e o pregador muçulmano Fethullah Gulen, líder do movimento Hizmet.

O movimento, cujo nome significa "serviço" em turco, foi criado na década de 1970 por Gulen, refugiado desde 1999 nos Estados Unidos. Ele escapou da Justiça turca, que o acusou de atividade contrária ao laicismo. O pregador é uma personalidade discreta e que se expressa em sua maioria por porta-vozes.

Sua organização dispõe de uma rede de escolas presentes em mais de cem países, cujo objetivo é difundir a cultura turca no mundo. O Hizmet é dono de vários canais de televisão e do jornal Zaman, o diário de maior circulação da Turquia.

A organização alega ter milhões de adeptos e contatos influentes no empresariado, na polícia e no Poder Judiciário. Muitos legisladores, membros do governo ou pessoas ligadas ao poder, são consideradas próximos a Gülen, começando pelo atual presidente turco, Abdullah Gül, e pelo vice-primeiro-ministro, Bülent Arinc.

CONFLITO

Desde a vitória do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP), do primeiro-ministro Erdogan, nas eleições legislativas de 2002, o movimento Hizmet, que compartilha a mesma base conservadora e religiosa, tem sido um dos principais aliados do governo turco.

A organização contribuiu, principalmente, para afirmar a autoridade governamental junto aos sistemas policial e judicial, setores considerados mais próximos do "antigo regime". No entanto, as diferenças entre o governo e o Hizmet surgiram, particularmente durante a rebelião contra o governo, em junho.

O presidente, o vice-primeiro-ministro e o jornal "Zaman" estimularam a conciliação com os opositores, mas decidiram acatar a política de Erdogan. A ruptura ocorreu em novembro, após o governo anunciar que queria abolir as "dershane" (instituições privadas de apoio escolar).

O movimento Hizmet administra centenas dessas escolas, que contribuem consideravelmente para o seu poderio financeiro. Porta-vozes "gülenistas" denunciaram a medida e prometeram fazer todo o possível para evitar que ela se concretize.

ENVOLVIMENTO

Erdogan acredita que a organização de Gülen está por trás da operação anti-corrupção que envolveu dezenas de figuras próximas ao poder. Ele nunca mencionou o nome de seu adversário, mas repete que os gulenistas começaram a investigar em resposta ao projeto de exclusão das "dershane".

Por essa razão, o governo ordenou uma punição sem precedentes na alta hierarquia policial, acusada de não ter impedido a operação em curso. Além disso, nomeou novos procuradores, na tentativa de manter sob controle os que estão no comando do caso.

Segundo os analistas, o confronto Erdogan-Gülen terá consequências nas eleições municipais de março de 2014. "O mito de um AKP inafundável acabou", opina Cihan Celik no editorial deste sábado do jornal Hürriyet Daily News.

Nos últimos dez dias, cinco deputados deixaram o partido do primeiro-ministro, o que demonstra a divisão no governo. Resta saber se a crise e o confronto com Gülen podem ameaçar a vitória do AKP nas eleições municipais e comprometer o futuro de Erdogan, que controla há 11 anos a vida política turca.


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