Folha de S. Paulo


Universidade de Mandela graduou nomes da elite anticolonial africana do século 20

Nelson Mandela sentiu o primeiro gosto da política num pequeno campus universitário, formado por três casarões brancos com janelas largas convergindo para um pátio com árvores, flores e calçamento de tijolinhos.

Em 1939, aos 21 anos, ele chegou à Universidade Fort Hare, na cidade de Alice, na província de Cabo Oriental, não muito longe de onde cresceu e amanhã será enterrado. Veio para cursar direito, mas não durou muito.

Um ano depois, acabou expulso, após organizar uma greve de estudantes contra a falta de democracia racial na instituição. Sua fama de ser um "causador de problemas" nascia ali.

Fort Hare sentiu especialmente a morte do ex-aluno ilustre. "Até o fim da vida ele manteve relação próxima com a universidade", diz Wabsi Mntambo, diretora para ex-alunos.

Após ser expulso, Mandela obteve autorização para seguir o curso e se formou em direito pela universidade por correspondência, pois já morava em Johannesburgo. Anos mais tarde, receberia um título de doutor honoris causa, em uma tentativa de compensar tardiamente a expulsão.

Nos anos 30, negros sul-africanos em idade universitária em busca de educação de qualidade não tinham outra opção que não Fort Hare.

Fundada por missionários escoceses em 1916 com o nome de South African Natives College (Faculdade para os Nativos Sul-Africanos), durante décadas foi a única instituição de ensino superior a aceitar estudantes negros.

Em 1923, virou universidade e adotou o nome de um forte britânico do século 19 que fica nas redondezas.

Passou a atrair estudantes de todo o continente africano, e graduou a elite da política anticolonial africana do século 20.

Se os EUA formam seus presidentes em Harvard e Yale, e a França na Escola Nacional de Administração, a África tem Fort Hare.

A lista de ex-alunos impressiona. Além de Mandela, outros líderes-chave da luta contra o apartheid estudaram ali, como Oliver Tambo, Govan Mbeki e o arcebispo Desmond Tutu.

"Mandelas" continente afora, que lideraram a independência de seus países, também foram alunos, caso de Kenneth Kaunda, primeiro presidente da Zâmbia e Julius Nyerere, "pai" da Tanzânia. Robert Mugabe, fundador e hoje ditador do Zimbábue (uma espécie de Mandela que não deu certo), é outro dessa relação.

CONCURSO PROIBIDO

Hoje a universidade tem cerca de 10 mil alunos, 80% deles negros.

Pública, continua sendo uma das principais da África do Sul, escondida na cidadezinha de Alice, território ancestral dos xhosa, a etnia de Mandela.

A especialidade são cursos de humanidades (direito, educação, comunicação), mas tem ganhado renome na área de estudos agrícolas recentemente.

Nos anos duros da segregação racial, era um foco de manifestações estudantis e vigilância constante do governo. "Nem concurso de beleza os estudantes podiam fazer que a polícia já dispersava", afirma Vuyelwa Mdazana, responsável pela rádio do campus. No auge do apartheid, dos anos 60 aos 80, o reitor era africâner (descendente de holandeses), menos preocupado com a qualidade do ensino do que em ser os olhos das autoridades sobre o corpo de alunos.

A anualidade é subsidiada pelo governo, mas mesmo assim salgada para padrões locais: US$ 2.000, incluindo residência em dormitórios, ainda iguaizinhos aos dos tempos de Mandela, enfileirados em corredores longos e com banheiro coletivo.

Os registros do Mandela estudante se perderam com o tempo, mas a universidade é a guardiã dos arquivos oficiais do período dele como presidente da África do Sul (1994-99). São 450 caixas de atos, correspondências e decisões administrativas, abertas a consulta pública.

Os estudantes se orgulham muito do passado da instituição, ainda que a fama também incomode.

"As pessoas reduzem Fort Hare à universidade do Mandela, mas ela é maior do que isso. A universidade formou Mandela, não foi Mandela quem formou a universidade", diz Sabelo Dingiswayo, estudante de economia.


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