Folha de S. Paulo


Após Mandela, Congresso Nacional Africano será testado nas urnas

Isaac Makhura apontou para o aglomerado esquálido de barracos diante de sua casa neste assentamento informal, onde vivem algumas das pessoas mais miseráveis do país. Perguntou se era surpreendente que ele já não hesitasse em votar contra o Congresso Nacional Africano, que foi o partido de toda sua família durante três gerações.

"Foi para isto que Nelson Mandela lutou por nossa liberdade?" ele perguntou, enquanto os sul-africanos choravam a morte de Mandela, o primeiro presidente negro da África do Sul e mais amado líder do CNA. "O CNA nos abandonou."

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Nos próximos meses o CNA vai enfrentar eleições que possivelmente sejam as mais arduamente disputadas desde sua chegada ao poder, em 1994. E, pela primeira vez, o fará sem sua figura moral mais importante, Mandela.

As acusações de corrupção feitas contra altas autoridades, como o próprio presidente Jacob Zuma; o sistema de ensino falido; o desemprego endêmico, a criminalidade violenta e a desigualdade crescente, tudo isso vem erodindo o apoio antes quase universal dado ao CNA em lugares como Diepsloot, tradicionalmente uma base sólida do partido que alardeia seu "viés favorável à classe trabalhadora".

Hoje Diepsloot é um campo de batalha político em que outros partidos estão criando espaço. Ninguém prevê que o CNA seja derrotado na eleição nacional, mas há sinais de que o partido pode receber menos de 60% dos votos, um número psicologicamente importante para um partido acostumado a ter vitórias eleitorais arrasadoras.

Mandela deixou para trás uma África do Sul em que o poder político está nas mãos da maioria. E ele ajudou a afastar o país daquele que parecia ser o maior risco na época de sua transição para a democracia: uma guerra racial entre negros e brancos.

No entanto, o Congresso Nacional Africano foi pouco a pouco deixando de ser um movimento de libertação e convertendo-se em uma máquina política poderosa. A corrupção é endêmica. Os vínculos profundos entre políticos e grandes empresas reforçam a percepção de que as figuras que estão no poder buscam apenas seu próprio enriquecimento.

A morte de Nelson Mandela impôs perguntas difíceis ao partido.

Mandela conduziu o CNA para longe de seu passado socialista, evitando meios radicais de redistribuição da riqueza, como a tomada de terras e empresas de brancos. Isso ajudou a manter a paz e estabilizar a economia, mas dificultou a tarefa de elevar o padrão de vida dos negros.

Enquanto isso, muitos sul-africanos negros esperavam ter acesso rápido às comodidades da vida de classe média: residências suburbanas com piscinas e quintais, empregos de colarinho branco e escolas de alto nível.

Isso não aconteceu. Os sul-africanos brancos conservaram sua riqueza, em grande medida, e seus bairros suburbanos bem conservados não foram invadidos por favelados. De acordo com o censo deste ano, as famílias brancas ganham seis vezes mais que as negras.

Desde o fim do apartheid, o governo liderado pela CNA deu casas gratuitas a 2,5 milhões de famílias negras pobres. Mais de 15 milhões de pessoas recebem auxílios do governo. Milhões de famílias negras ganharam acesso a água encanada e eletricidade, pela primeira vez.

Mesmo assim, o partido de Mandela não chegou perto de cumprir a promessa que fez em sua primeira campanha eleitoral, em 1994: uma vida melhor para todos.

Para muitos, o partido parece estar mais focado na busca de uma vida melhor para alguns. Essa visão foi reforçada pela divulgação recente de um relatório preliminar sobre um dos maiores escândalos de corrupção na África do Sul, a reforma de US$27 milhões na residência particular de Zuma.

Tradução de CLARA ALLAIN


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