Folha de S. Paulo


Brancos de cidade sul-africana ignoram morte de Mandela e elogiam apartheid

Enquanto a África do Sul recebia em choque a morte de Nelson Mandela, na quinta, a vida seguia sem sobressaltos na pequena cidade de Kleinfontein, de mil habitantes.

Enquanto igrejas ficavam lotadas no domingo (8) no primeiro domingo sem o líder, a capelinha da localidade não recebia uma única oração em prol do herói de milhões de sul-africanos.

"Essa idolatria a Mandela é algo tão exagerado...", diz Marisa Haasbroek, escritora e dublê de porta-voz da comunidade. Ninguém tem planos de ir ao estádio de Johannesburgo onde 90 mil pessoas farão nesta terça-feira um tributo ao ex-presidente.

Fábio Zanini/Folhapress
Busto em homenagem ao premiê Verwoerd, da época do apartheid, na praça da cidade
Busto em homenagem ao premiê Verwoerd, da época do apartheid, na praça da cidade

A 40 km da capital, Pretória, Kleinfontein ("pequena fonte", em africâner) tem 800 hectares de área cercada, com seguranças particulares na entrada e uma regra básica: ali, só podem viver africâneres, descendentes de holandeses que chegaram à região no século 19 e criaram o apartheid nos anos 1940. Negros, apenas para realizar alguma entrega.

Beneficiam-se de uma brecha da Constituição que permitiu a criação de "comunidades culturais" na nova África do Sul.

No papel, não são uma cidade, mas uma dessas comunidades, funcionando numa grande fazenda. Na prática, são o que restou do projeto de dividir o país e criar um Estado branco em parte dele, após o fim do regime racista, em 1994 --no centro do país há outra comunidade parecida, Orânia.

Indiferença, na verdade, é o que de mais positivo Mandela encontra ali. Hostilidade é mais frequente. Na entrada do lugarejo, um busto de Hendrik Verwoerd, premiê na fase mais dura do apartheid, nos anos 60, adorna uma pracinha.

Para os moradores, Mandela destruiu uma economia "sólida" ao criar políticas de ações afirmativas que também sucatearam os serviços públicos. Por isso, Kleinfontein se orgulha de ser "autossuficiente" na coleta de lixo e captação de água.

TURISTA

O lugar foi fundado em 1992, dois anos após a libertação de Mandela. Quatro famílias compraram a área, uma fazenda à beira de uma rodovia. Aos poucos, brancos insatisfeitos com a ideia de um país multirracial construíram casas confortáveis, que dão ao local aparência de condomínio de alto padrão.

"Vim porque não gosto da ideia de chegar em casa e me sentir uma turista, entre pessoas com quem não me identifico", afirma Haasbroek.

O local pode crescer muito ainda. Há espaço para 6.000 casas. Nesta terça-feira, ali funcionam uma escola, um templo ecumênico (o que ignorou a morte de Mandela), algumas lojas, mercado e um banco.

Para os moradores, é um refúgio, não um claustro. Quase todos viajam diariamente para Pretória para trabalhar, onde inevitavelmente convivem com negros. Sem problemas, diz a porta-voz. "Não temos nada contra negros, temos a favor de nós."

A violência nas grandes cidades colabora para a decisão de morar na bucólica Kleinfontein, mas o que motiva essas pessoas é a nostalgia por um período que, segundo essa visão da história, era próspero e previsível.

Os que lutam contra a integração racial são uma franja radical no país. A África do Sul tem 9% de brancos, e a maioria critica os isolacionistas, que são prova viva de que o racismo não foi superado.

Em Kleinfontein, a busca pela pureza é radical. Quem quiser comprar um lote precisa passar por um rigoroso processo seletivo, com banca examinadora. Não basta ter nascido africâner; é preciso considerar-se africâner primeiro, sul-africano depois.

O apartheid é visto de forma geral como algo benigno, mas não sem alguns equívocos. "O erro foi permitir a brancos recorrerem ao trabalho manual de negros. Era imoral um negro limpar uma privada e não poder usá-la", afirma Haasbroek.

Em Kleinfontein, a solução para corrigir tal injustiça foi simples: brancos limpam suas privadas. Ter empregados negros é proibido.


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