Folha de S. Paulo


Para geração nascida após apartheid, luta de Mandela é história

Sentada na sala confortável de sua casa em um subúrbio a 45 minutos de Johannesburgo, Nokuthula Magubane, 18 anos, fazia algo que seria praticamente impensável para gerações mais velhas de sul-africanos negros: elogia o idioma africâner.

"O africâner é uma língua tão simples e bonita", ela falou. "É só relaxar, falar seu africâner e ficar feliz."

A obrigatoriedade do africâner nas escolas durante o apartheid foi uma dos estopins das revoltas estudantis de Soweto em 1976. Centenas de jovens foram mortos nos protestos, muitos deles mais jovens que Magubane.

Ozier Muhammad/The New York Times
Nokuthula Magubane, 18, está aprendendo o africâner, antes rejeitada pelos negros: 'É uma lingua tão simples e bonita', diz
Nokuthula Magubane, 18, está aprendendo o africâner, antes rejeitada pelos negros: 'É uma lingua tão simples e bonita', diz

Inúmeros outros preferiram abandonar a escola a ter aulas naquela que consideravam a língua do opressor. Foi um momento fundamental na luta contra o apartheid, e o dia do levante, 16 de junho, foi instituído como Dia Nacional da Juventude na nova África do Sul.

Mas, para Magubane, "em última análise, o africâner é uma língua, nada mais". Sentimentos como esses são comuns entre as pessoas da geração dela, conhecidas como "born frees" --nascidas em liberdade-- porque nasceram após o fim do apartheid ou pouco antes disso, sendo jovens demais para ter recordações dele.

E, embora elas com certeza conheçam Nelson Mandela, que morreu na quinta-feira, é quase impossível captarem plenamente como foi vê-lo emergir da prisão em 1990 e, quatro anos depois, tornar-se presidente do país nas primeiras eleições plenamente democráticas na África do Sul.

Os "born frees" compõem uma parte enorme da população: cerca de 40%, segundo números do censo. E seus muitos críticos entre os sul-africanos mais velhos dizem que eles são apáticos e despolitizados, sem consciência da história da luta que lhes proporcionou vida melhor.

Mas os "born frees" são conhecidos por outro nome também --são a geração Mandela-- e insistem que sua determinação de olhar para o futuro, não para o passado, é o maior tributo que podem render a ele.

"Sim, éramos oprimidos pelos brancos; sim, isso aconteceu; sim, isso doeu", disse Magubane enquanto Mandela ainda estava no fim da vida. "Mas devemos perdoar uns aos outros para que possamos ir para frente e contribuir plenamente para a África do Sul que queremos ver no futuro."

Akhumzi Jezile, 24, é produtor, locutor e personalidade de TV. Para ele, os "born frees" são vistos como apáticos porque não reagem com a mesma emoção ou em número tão grande quanto faz a geração de Soweto nas passeatas do Dia da Juventude e ocasiões memoriais semelhantes.

Ozier Muhammad/The New York Times
Miles Mabaane, 18, quer buscar novas estratégias para que os mais jovens possam voltar a se interessar pela política
Miles Mabaane, 18, quer buscar novas estratégias para que os mais jovens possam voltar a se interessar pela política

"Não se trata de não entender o apartheid; a questão é que enfrentamos desafios diferentes", ele disse. "Acho que a ideia de que os 'born frees' ignoram a realidade vem de uma geração mais velha que vê uma juventude que não reage como ela. Mas isso é normal. Nós não vivemos o apartheid, mas temos vibração. Lutamos por nossas próprias questões."

Ele apontou para campanhas educativas lideradas por jovens para combater os flagelos da dependência de drogas, criminalidade e Aids. "A geração de 1976 ou a geração anterior à nossa teve desafios diferentes. Não podemos falar do apartheid todos os dias, para sempre."

Muitas das atitudes dos "born frees", mas com certeza não todas, diferem nitidamente das dos sul-africanos mais velhos porque suas experiências são tão nitidamente distintas. Os jovens, por exemplo, têm probabilidade maior de manter relações sociais com pessoas de outras raças, revelou o Reconciliation Barometer, uma pesquisa anual de opinião pública.

De acordo com o Reconciliation Barometer 2012, "parece que muitos jovens podem não apenas estar interagindo, mas desenvolvendo relacionamentos mais profundos com pessoas das quais historicamente estariam separadas".

Também é muito menos provável que tenham confiança em líderes políticos, segundo o Reconciliation Barometer, e é menos provável que atribuam a desigualdade econômica e social no país ao apartheid.

Apesar do aviso lançado por Zwelinzima Vavi, secretário-geral da poderosa confederação sindical da África do Sul, de que os jovens do país representam uma "bomba-relógio ativada" devido aos índices de pobreza e desemprego que enfrentam --duas vezes maiores que os da população geral--, o otimismo predomina entre os "born frees", segundo o Barometer e outras pesquisas.

De fato, a geração equivalente à deles em outros países, frequentemente conhecida como geração do milênio, também tende ao otimismo.

Mesmo os jovens de "townships" pobres demonstram otimismo contagiante, embora para muitos a vida tenha mudado muito pouco em termos materiais desde o fim do apartheid, e o desemprego tenha se agravado.

"Hoje em dia não há fronteiras", explicou Miles Mabaane, 18 anos, que vive em Vosloorus, a sudeste de Johannesburgo. "Nós, jovens, temos o potencial de criar novas estratégias para salvar este país, maneiras de fazer as coisas melhor, de atender a todos no país."

Enquanto os sul-africanos mais velhos se queixam que os "born frees" não valorizam o passado, alguns "born frees" dizem que seus pais tentam mantê-los "prisioneiros" do passado.

"Somos lembrados constantemente do que aconteceu, lembrados diretamente pelas pessoas que participaram da luta. Para nos manter leais, eles fazem uma lavagem cerebral contínua em nós, nos metendo medo do que o 'homem branco' fez, falando da dor provocada, do sofrimento pelo qual passou a geração deles", escreveu a blogueira AkoLee, que tinha seis anos em 1994, quando Mandela chegou à Presidência.

"Dizem que somos ingratos por não pensar como eles, por questionar o que o 'homem negro' está fazendo."

Um artista popular de hip-hop sul-africano conhecido como HHP --pronuncia-se "double HP"-- resumiu o abismo geracional de experiências numa canção intitulada "Harambe", que também revela uma apreciação clara dos sacrifícios feitos pelas gerações anteriores.

"Não sou do tipo político", diz a canção. "Não sou do tipo que finge uma imagem para passar essa coisa de consciência. Nunca me chamaram de crioulo. Não posso imaginar ver dez policiais com cães invadindo minha casa. Não sei qual é o cheiro do gás lacrimogêneo. Não imagino a sensação de uma bala de borracha nas costas."

"Mas é por causa de vocês que não falo africânder hoje. Que eu tenho uma chance hoje. Por causa de vocês a juventude negra de hoje é emancipada."

A maioria dos sul-africanos negros de 20 anos atrás não reconheceria o tipo de vida levado por Magubane. Um terço dos amigos dela são brancos. Ela conhece muitos deles desde os tempos da escola. Chama a regente branca de seu coral de "Tanni Christine", ou "Tia Christine" em africânder.

Quanto a Mandela, ela declarou: "Vimos o exemplo que ele deu e agora vamos segui-lo. Vamos levar o exemplo dele um passo adiante no futuro e construir a África do Sul que ele teria gostado de ver."

Tradução de CLARA ALLAIN


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