Folha de S. Paulo


É um ideal pelo qual estou disposto a morrer; disse Mandela em 64 (2ª parte)

Primeiro presidente negro da África do Sul (1994-99), Nelson Mandela passou 27 anos preso por se opor ao apartheid sul-africano.

Leia abaixo a segunda parte do discurso que ele fez do banco dos réus no chamado Julgamento de Rivônia, na Suprema Corte de Pretória, em 1964.

Mandela morreu nesta quinta-feira, aos 95 anos, em sua casa em Johannesburgo.

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"Vossa Excelência, a história do mundo é repleta de exemplos semelhantes. Talvez a ilustração mais notável seja encontrada na cooperação entre a Grã-Bretanha, os Estados Unidos da América e a União Soviética na luta contra Hitler. Ninguém a não ser Hitler teria ousado sugerir que tal cooperação teria convertido Churchill ou Roosevelt em comunistas ou instrumentos de comunistas, ou que a Grã-Bretanha ou a América estivessem trabalhando para criar um mundo comunista.

Dou esses exemplos, Meritíssimo, porque são relevantes à alegação de que nossa sabotagem foi um complô comunista ou obra de supostos agitadores. Isso porque, Meritíssimo, outra instância de tal cooperação pode ser encontrada precisamente no Umkhonto. Pouco depois de o Umkhonto ser constituído, fui informado por alguns de seus membros que o Partido Comunista apoiaria o Umkhonto, e isso depois aconteceu. Numa etapa posterior, o apoio foi dado abertamente.

Creio que os comunistas sempre exerceram um papel ativo na luta pela liberdade de países colonizados, porque os objetivos de curto prazo do comunismo sempre corresponderão aos objetivos de longo prazo dos movimentos em busca da liberdade. Assim, Meritíssimo, os comunistas desempenharam um papel importante nas lutas pela liberdade travadas em países como a Malásia, Argélia e Indonésia, mas nenhum deles hoje é um país comunista. Igualmente, os comunistas exerceram papel importante nos movimentos de resistência clandestina que nasceram na Europa na última Guerra Mundial. Mesmo o general Chiang Kai-Shek, hoje um dos mais acirrados inimigos do comunismo, combateu ao lado dos comunistas contra a classe dominante, na luta que levou a sua chegada ao poder na China na década de 1930.

Esse padrão de cooperação entre comunistas e não comunistas se repetiu no movimento de libertação nacional da África do Sul. Antes da proscrição do Partido Comunista, campanhas conjuntas envolvendo o Partido Comunista e os movimentos no Congresso eram uma prática aceita. Os comunistas africanos podiam tornar-se membros do CNA e o faziam; alguns deles atuaram nos comitês nacional, provinciais e locais. Entre os que serviram na Executiva Nacional estão Albert Nzula, ex-secretário do Partido Comunista, outro ex-secretário, Edwin Mofutsanyana, e J.B. Marks, ex-membro do Comitê Central do Partido Comunista.

Eu entrei para o CNA em 1944 e em 1952 me tornei presidente do CNA no Transvaal e vice-presidente nacional. Em minha juventude, acreditava que a política de admitir comunistas no CNA, além da cooperação estreita existente por vezes entre o CNA e o Partido Comunista em questões específicas, levaria à diluição do conceito do nacionalismo africano. Nessa época eu era membro da Liga da Juventude do Congresso Nacional Africano e fiz parte de um grupo que defendeu a expulsão dos comunistas do CNA. Essa proposta foi derrotada redondamente, e entre os que votaram contra ela estiveram alguns dos setores mais conservadores da opinião política africana.

Eles defendiam a política com o argumento de que, desde sua origem, o CNA foi formado e fortalecido, não como partido político com uma escola de pensamento político, mas como um Parlamento do povo africano, com espaço para pessoas de posições e convicções políticas diversas, todas unidas pela meta comum da libertação nacional. Acabei aderindo a esse ponto de vista e o tenho defendido desde então.

Talvez seja difícil para sul-africanos brancos, com um preconceito entranhado contra comunistas, compreenderem por que políticos africanos experientes são prontamente aceitam comunistas como seus aliados. Mas, para nós, a razão é evidente. Entre aqueles que combatem uma opressão, divergências teóricas são um luxo para o qual não há lugar. Ademais, por muitas décadas os comunistas foram o único grupo político na África do Sul disposto a tratar os africanos como seres humanos e seus iguais; os comunistas foram os únicos que se dispunham a comer conosco, a falar conosco, conviver conosco e trabalhar conosco.

Eles eram o único grupo político disposto a trabalhar com os africanos com vistas à conquista de direitos políticos e uma participação na sociedade. Por esse motivo, há muitos africanos hoje que tendem a equacionar a liberdade com o comunismo. Eles são reforçados nessa convicção por um Legislativo que tacha todos os expoentes do governo democrático e da liberdade africana de comunistas e que, sob a Lei de Supressão do Comunismo, cassou muitos deles que não são comunistas. Embora, Meritíssimo, eu não seja comunista e nunca tenha sido filiado ao Partido Comunista, eu mesmo fui cassado segundo os termos daquela Lei perniciosa, devido ao papel que exerci na Campanha de Desafio. Eu também fui cassado e condenado dentro dos termos dessa Lei.

Não é apenas na política interna que contamos os comunistas entre aqueles que apoiam nossa causa. No campo internacional, os países comunistas sempre vêm nos ajudar. Nas Nações Unidas e em outros Conselhos do mundo, o bloco comunista tem apoiado a luta afro-asiática contra o colonialismo, com frequência parecendo ser mais solidário com nossa causa que algumas das potências ocidentais. Embora o apartheid seja universalmente condenado, o bloco comunista se manifesta contra ele em voz mais alta que a maior parte do mundo ocidental. Nessas circunstâncias, foi preciso ser um político jovem e incauto, como eu era em 1949, para proclamar que os comunistas eram nossos inimigos.

Juiz: Bem, Mandela, é hora de a Corte fazer um recesso.

Meritíssimo, eu gostaria agora de falar de minha própria posição. Neguei aqui que eu seja comunista, e creio que, nas circunstâncias, tenho a obrigação de declarar exatamente quais são minhas convicções políticas, para explicar qual era minha posição no Umkhonto e qual é minha atitude em relação ao uso da força.

Sempre me enxerguei em primeiro lugar como patriota africano. Afinal, nasci em Umtata, 46 anos atrás. Meu guardião era meu primo, que era o então chefe máximo de Thembuland, e tenho parentesco tanto com Sabata Dalindyebo, o atual chefe máximo, e com Kaiser Matanzima, o ministro-chefe para o Transkei.

Hoje me sinto atraído pela ideia de uma sociedade sem classes, atração que se deve em parte a leituras marxistas e em parte à admiração que sinto pela estrutura e organização das sociedades africanas antigas neste país. A terra, na época o principal meio de produção, pertencia à tribo. Não havia ricos ou pobres e não existia exploração.

É verdade, como já declarei, que fui influenciado pelo pensamento marxista. Mas isso também se aplica a muitos líderes dos Estados recém-independentes. Pessoas tão diferentes quanto Gandhi, Nehru, Nkrumah e Nasser admitem esse fato. Todos reconhecemos a necessidade de alguma forma de socialismo para possibilitar a nosso povo alcançar os países avançados do mundo e superar nosso legado de pobreza extrema. Mas isso não significa que sejamos marxistas.

De fato, Meritíssimo, de minha própria parte, creio que é discutível se o Partido Comunista tem algum papel específico a desempenhar neste estágio particular de nossa luta política. A tarefa básica no presente momento é a remoção da discriminação racial e a obtenção dos direitos democráticos com base na Carta da Liberdade, e é uma luta que pode ser mais bem liderada por um CNA forte. Na medida em que o Partido Comunista propicia essa tarefa, Meritíssimo, eu saúdo sua assistência. Entendo que ele é um dos principais meios pelos quais pessoas de todas as raças podem ser atraídas a participar de nossa luta.

Mas, a partir de minha leitura da literatura marxista e de conversas com marxistas, formei a impressão de que os comunistas vêem o sistema parlamentar de trabalho do Ocidente como antidemocrático e reacionário. Eu, pelo contrário, sou admirador desse sistema.

A Magna Carta, a Petição de Direitos, a Carta de Direitos são documentos venerados por democratas em todo o mundo.

Tenho grande respeito pelas instituições políticas britânicas e pelo sistema de justiça desse país. Vejo o Parlamento britânico como a instituição mais democrática do mundo, e a independência e imparcialidade do Judiciário britânico nunca deixam de suscitar minha admiração.

O Congresso americano, a doutrina da separação de poderes desse país, além da independência de seu Judiciário, me despertam sentimentos semelhantes.

Fui influenciado em meu pensamento tanto pelo Ocidente quanto pelo Oriente. Tudo isso me levou a sentir que devo ser absolutamente imparcial e objetivo na minha busca por uma fórmula política. Não devo me amarrar a nenhum sistema específico de sociedade senão o do socialismo. Preciso me conservar livre para emprestar o melhor que têm o Ocidente e o Oriente.

Eu gostaria de falar agora de alguns dos itens apresentados como provas. Muitos deles são textos manuscritos por mim. Sempre foi meu hábito resumir por escrito os materiais que estudo.

Os itens R20, 21 e 22 são palestras manuscritas por mim, mas que não são trabalhos originais meus. Foram escritos nas seguintes circunstâncias:

Durante vários anos, um velho amigo [pessoa não identificada tosse] com quem trabalhei muito estreitamente em questões do CNA e que ocupou cargos seniores tanto no CNA quanto no Partido Comunista vinha tentando me persuadir a ingressar no Partido Comunista. Eu tinha tido muitas discussões com ele sobre o papel que o Partido Comunista pode desempenhar nesta etapa de nossa luta. E eu lhe transmiti as mesmas opiniões relativas a minhas convicções políticas que já descrevi previamente em minha declaração.

Para me convencer de que eu deveria ingressar no Partido Comunista, de tempos em tempos ele me dava literatura marxista para ler, se bem que eu nem sempre tivesse tempo para ler o material. Tanto eu quanto ele nos mantivemos firmes em nossos argumentos sobre a conveniência de eu ingressar no Partido Comunista. Ela [sic] afirmava que, ao conquistarmos a liberdade, não conseguiríamos resolver nossos problemas de pobreza e desigualdade sem estabelecer um Estado comunista e que, para isso, precisaríamos de marxistas formados.

Eu mantive minha atitude de que não devem ser introduzidas diferençais ideológicas quaisquer enquanto a liberdade não tiver sido conquistada. Eu o vi em diversas ocasiões na fazenda de Liliesleaf, e em uma das últimas dessas ocasiões ele estava ocupado escrevendo, com livros espalhados à sua volta. Quando lhe perguntei o que fazia, ele me disse que estava escrevendo palestras para serem usadas pelo Partido Comunista, sugerindo que eu as lesse. Havia várias palestras em forma de rascunho. Depois de fazer a leitura, eu lhe disse que pareciam muito complicadas demais para o leitor comum.

Juiz: Não captei o nome --quem você disse que é esse homem com quem estava falando?

Mandela: Sinto muito, meritíssimo.

Juiz: Quem é o homem a quem você se refere?

Mandela: Vossa Excelência, como questão de princípio...

Juiz: Não, pensei que você tivesse mencionado o nome dele.

Mandela: Não mencionei seu nome.

Juiz: Bem, continue então, Mandela. E isso foi feito.

Juiz: Sim.

Mandela: Intencionalmente.

Juiz: Sim.

Mandela: Eu estava dizendo, Meritíssimo, que depois de ler as palestras, eu disse a ele que pareciam complicadas demais para o leitor comum, escritas numa linguagem obtusa e repletas dos clichês e do jargão comunistas de praxe. Se a Corte olhar para algumas das obras padrão do marxismo, meu argumento será comprovado. Ele disse que seria impossível simplificar a linguagem sem perder o efeito do que o autor estava tentando enfatizar. Discordei, e ele então me pediu que tentasse reescrever as palestras na forma simplificada sugerida por mim. Concordei em ajudá-lo e pus mãos à obra num esforço para fazê-lo, mas não cheguei a concluir a tarefa, já que mais tarde fiquei ocupado com outros trabalhos práticos que eram mais importantes. Nunca mais vi o manuscrito inacabado até ele ser exibido neste julgamento. Quero declarar que não é minha a letra que aparece no item R23, que foi obviamente redigido pela pessoa que preparou as palestras.

Meritíssimo, há certos itens apresentados que sugerem que tenhamos recebido apoio financeiro do exterior, e quero agora tratar dessa questão [interferência de áudio ao longo da sentença anterior].

[interferência de áudio] Nossa luta política sempre foi financiada por fontes internas, com recursos levantados por nosso próprio povo e por nossos apoiadores. Sempre que fizemos uma campanha especial ou que tínhamos um processo político importante, recebemos assistência financeira de indivíduos ou organizações dos países ocidentais que se solidarizavam com nossa causa. Nunca sentimos que fosse necessário ir mais além dessas fontes.
Mas quando o Umkhonto foi formado, em 1961, e foi lançada uma nova fase da luta, percebemos que esses acontecimentos pesariam muito sobre nossos recursos parcos e que a escala de nossas atividades seria dificuldada pela falta de recursos. Uma das instruções que recebi quando viajei para o exterior em janeiro de 1962 foi levantar recursos junto a Estados africanos.

Devo acrescentar que, enquanto estive no exterior, tive discussões com líderes de movimentos políticos africanos e descobri que praticamente cada um deles, em áreas que ainda não tinham alcançado a independência, tinha recebido assistência de todas as formas de países socialistas e também do Ocidente, incluindo assistência financeira. Também descobri que alguns Estados africanos muito conhecidos, todos eles não comunistas ou até mesmo anticomunistas, tinham recebido assistência semelhante.

Ao retornar à República, fiz ao CNA a recomendação forte de que não nos limitássemos à África e aos países ocidentais, mas que também enviássemos uma missão aos países socialistas para levantar os recursos que necessitávamos com tanta urgência.

Me foi dito que fui condenado depois de tal missão ter sido enviada.

Segundo minha compreensão dos argumentos do Estado, e em especial segundo o depoimento prestado por "X", o Umkhonto foi uma inspiração do Partido Comunista que, jogando com queixas imaginárias, buscava conquistar a adesão do povo africano para um exército que ostensivamente combateria pela liberdade africana, mas na realidade combateria por um Estado comunista. Nada poderia estar mais longe da verdade. Na realidade, a sugestão é absurda.

O Umkhonto foi formado por africanos para promover sua luta pela liberdade. Comunistas e outros apoiaram o movimento, e nós só desejaríamos que mais setores da comunidade se unissem a nós.
Nossa luta é contra sofrimentos reais, e não imaginários, ou não, para empregar a linguagem do promotor do Estado, "chamados sofrimentos". Basicamente, Vossa Excelência, combatemos dois elementos que são as marcas características da vida africana na África do Sul e são institucionalizados pela legislação que queremos ver revogada. Esses elementos são a pobreza e a ausência de dignidade humana. Não precisamos de comunistas ou de chamados "agitadores" para nos ensinar sobre essas coisas.

A África do Sul é o país mais rico da África e poderia ser um dos mais ricos do mundo. Mas é uma terra de extremos e de contrastes espantosos. [interferência de áudio] Os brancos desfrutam o que muito possivelmente seja o padrão de vida mais elevado do mundo, enquanto os africanos vivem na pobreza e miséria. Quarenta por cento dos africanos vivem em reservas absolutamente superlotadas e, em alguns casos, assoladas pela seca, onde a erosão do solo e o uso excessivo do mesmo faz com que lhes seja impossível sobreviverem adequadamente com a agricultura. Trinta por cento são lavradores, meeiros e assentados em fazendas de proprietários brancos, trabalhando e vivendo sob condições semelhantes às dos servos na Idade Média. Os outros 30% vivem em cidades onde desenvolveram hábitos econômicos e sociais que, sob muitos aspectos, os aproximam dos padrões brancos. Mas a maioria dos africanos, mesmo os que integram esse último grupo, é pobre, devido à sua renda baixa e ao alto custo de vida.

O setor africano urbano mais bem pago e próspero fica em Johannesburgo. Mas sua posição atual é desesperadora. As cifras mais recentes foram dadas em 25 de março de 1964 pelo sr. Carr, gerente do Departamento de Assuntos Não Europeus de Johannesburgo. A linha da pobreza para a família africana média em Johannesburgo, de acordo com o departamento do sr. Carr, é de 42,84 rands mensais. Ele mostrou que o salário mensal médio é 32,24 rands e que 46% de todas as famílias africanas em Johannesburgo não ganham o suficiente para sua sobrevivência.

A pobreza anda de mãos dadas com a desnutrição e a doença. A incidência de doenças provocadas pela desnutrição e a deficiência nutricional é muito alta entre os africanos. Tuberculose, pelagra, kwashiorkor [desnutrição infantil aguda por falta de proteínas], gastroenterite e escorbuto provocam mortes e a destruição da saúde. O índice de mortalidade infantil é um dos mais altos do mundo.

De acordo com o Departamento de Saúde de Pretória, estima-se que a tuberculose mate 40 pessoas por dia, quase todas africanas, e em 1961 foram informados 58.491 casos novos. Essas doenças, Meritíssimo, não apenas destroem os órgãos vitais do corpo, como resultam em condições mentais retardadas, em falta de iniciativa e redução do poder de concentração. Os resultados secundários de tais condições afetam toda a comunidade e o padrão do trabalho realizado por africanos.

Mas a queixa dos africanos não é o fato de serem pobres e dos brancos serem ricos, mas de que as leis feitas pelos brancos visam preservar essa situação.

Existem duas maneiras de sair da pobreza. A primeira é pela educação formal, e a segunda é o trabalhador conquistar qualificações maiores no seu trabalho, dessa forma passando a ser mais bem pago. No que diz respeito aos africanos, ambos esses caminhos para a melhora de situação são propositalmente limitados pela legislação.

Peço à Corte que recorde que o governo atual sempre buscou criar obstáculos aos africanos em sua busca de educação. Um de seus primeiros atos depois de chegar ao poder foi revogar os subsídios para a merenda escolar africana. Muitas crianças africanas que frequentavam a escola dependiam desse complemento à sua alimentação. Esse foi um ato cruel.

Há ensino obrigatório para todas as crianças brancas, a virtualmente nenhum custo para seus pais, sejam eles ricos ou pobres. Não são dadas oportunidades semelhantes às crianças africanas, embora existam algumas que recebam essa assistência.

Geralmente, porém, as crianças africanas precisam pagar mais pelo ensino que as crianças brancas. De acordo com estatísticas citadas pelo Instituto Sul-Africano de Relações Raciais em seu periódico de 1963, aproximadamente 40% das crianças africanas na faixa dos 7 aos 14 anos não frequentam a escola. Para as que o fazem, os padrões diferem tremendamente dos que são oferecidos às crianças brancas.

Em 1960-61, o governo gastou per capita [alguém tosse] com alunos africanos em escolas auxiliadas pelo Estado estimados 12,46 rands. Nos mesmos anos, gastou per capita com crianças brancas na província do Cabo (essas são as únicas cifras às quais tive acesso) 144,57 rands. Embora eu não tenha estatísticas à mão, pode-se afirmar, sem sombra de dúvida, que as crianças brancas com as quais foram gastos 144,57 rands per capita todas vieram de famílias mais ricas que as crianças africanas com as quais foram gastos 12,46 rands per capita.

A qualidade do ensino também é diferente. De acordo com o "Bantu Educational Journal", apenas 5.660 crianças africanas em toda a África do Sul foram aprovadas no exame de conclusão do ensino fundamental em 1962, e naquele ano apenas 362 estudantes africanos passaram o exame de admissão na universidade. Presume-se que esses resultados sejam condizentes com a política de educação bantu, sobre a qual o primeiro-ministro atual declarou, durante o debate sobre a Lei de Educação Bantu, em 1953, quando era ministro dos Assuntos Nativos, abre aspas:

"Quando eu tiver controle da educação dos nativos, vou reformá-la de modo que os nativos sejam ensinados desde a infância a perceber que a igualdade com os europeus não é para eles. Pessoas que acreditam na igualdade não são professores desejáveis para nativos. Quando meu departamento [interferência de áudio] controlar a educação nativa, saberá para que classe de ensino superior um nativo é apto e se ele terá na vida uma chance de fazer uso de seu conhecimento." Fecha aspas.

O outro obstáculo principal ao avanço econômico do africano é a barreira trabalhista de cor, sob a qual todos os empregos melhores e mais bem pagos na indústria são reservados exclusivamente para brancos. Ademais [interferência de áudio], os africanos que atuam nas ocupações não qualificadas e semi-qualificadas que lhes são permitidas não são autorizados a formar sindicatos que sejam reconhecidos pela Lei de Conciliação Trabalhista. Isso significa que as greves de trabalhadores africanos são ilegais e que é negado aos trabalhadores africanos o direito à negociação coletiva, que é permitido aos trabalhadores brancos mais bem pagos. A discriminação contra os trabalhadores africanos que faz parte da política de sucessivos governos sul-africanos é demonstrada pela chamada "política trabalhista civilizada", pela qual empregos não qualificados e protegidos no setor público são oferecidos aos trabalhadores brancos que não estão à altura dos trabalhos na indústria, empregos esses que pagam salários que superam de longe os ganhos médios do trabalhador africano na indústria.

O governo frequentemente responde às críticas dizendo que os africanos na África do Sul vivem em condições econômicas melhores que os habitantes dos outros países da África. Não sei se essa afirmação é verdadeira, e duvido que qualquer comparação possa ser traçada sem levar em conta o índice de custo de vida nesses países. Mas, mesmo que seja fato, é irrelevante no que diz respeito ao povo africano. Nossa queixa não é a de sermos pobres em comparação com pessoas de outros países, mas a de sermos pobres em comparação com as pessoas brancas de nosso próprio país e de sermos impedidos pela legislação de modificar esse desequilíbrio.

A falta de dignidade humana vivida pelos africanos é resultado direto da política de supremacia branca. A supremacia branca supõe a inferioridade negra. A legislação que visa preservar a supremacia branca institucionaliza essa noção. As tarefas subalternas na África do Sul são invariavelmente realizadas por africanos. Quando qualquer coisa precisa ser carregada ou limpada, o branco olha em volta, à procura de um africano que o faça por ele, quer o africano seja empregado por ele, quer não. Devido a esse tipo de atitude, os brancos tendem a enxergar os africanos como uma raça diferente.

Não os enxergam como pessoas que têm suas próprias famílias; não percebem que nós temos emoções; que nos apaixonamos, como se apaixonam os brancos; que queremos estar com nossas mulheres e nossos filhos, como os brancos querem estar com os deles; que queremos ganhar dinheiro, dinheiro suficiente para sustentar nossas famílias adequadamente, alimentá-las, vesti-las e fazê-las frequentar a escola. E que empregado doméstico, jardineiro ou lavrador braçal pode algum dia ter a esperança de fazer isso?

As leis do passe, que para os africanos estão entre as mais odiadas da África do Sul, tornam qualquer africano passível de ser barrado pela polícia a qualquer momento. Duvido que exista um único africano do sexo masculino na África do Sul que não tenha em algum momento tido um desentendimento com a polícia em torno de seu passe. Centenas e milhares de africanos são colocados na cadeia todos os anos devido às leis do passe. Ainda pior que isso é o fato que as leis do passe separam maridos e mulheres e levam à desintegração da vida familiar.

A pobreza e a desintegração da vida familiar têm efeitos secundários. Crianças perambulam pelas ruas das "townships" porque não têm escolas a frequentar, ou não têm dinheiro que lhes possibilite frequentar a escola, ou não têm pais em casa para verificar se vão à escola, porque pai e mãe, quando os dois estão presentes, precisam trabalhar para manter a família viva. Isso leva a uma ruptura nos padrões morais, ao aumento alarmante da ilegitimidade e à violência crescente que explode não apenas politicamente, mas em toda parte. A vida nas "townships" é perigosa. Não se passa um dia sem que alguém seja apunhalado ou agredido. E a violência é levada para fora das "townships", para as áreas residenciais brancas. As pessoas têm medo de andar sozinhas na rua à noite. Os assaltos e arrombamentos de casas vêm aumentando, apesar do fato de que tais crimes podem agora ser punidos com a sentença de morte. Sentenças de morte não podem curar a ferida aberta.

A única cura consiste em mudar as condições nas quais os africanos são forçados a viver, atendendo às suas reivindicações legítimas. Os africanos querem receber salários que possibilitem a sobrevivência. Os africanos querem fazer o trabalho do qual são capazes, e não o trabalho do qual o governo os declara capazes. Queremos poder viver onde obtemos trabalho, e não ser impedidos de viver numa área porque não nascemos ali.

Queremos ser autorizados e não obrigados a viver em casas alugadas que jamais poderão ser nossas. Queremos fazer parte da população geral, e não ser confinados em nossos guetos. Os homens africanos querem ter suas mulheres e seus filhos vivendo com eles onde eles trabalham; não querem ser forçados a viver de modo antinatural em albergues de homens. Nossas mulheres querem estar com seus companheiros, e não viver nas reservas como viúvas permanentes. Queremos o direito de estar fora de casa às 23h, e não sermos confinados em nossos quartos, como criancinhas. Queremos o direito de viajar em nosso próprio país e buscar trabalho onde quisermos, e não onde o Burô do Trabalho nos manda. Queremos uma participação justa na África do Sul como um todo; queremos segurança e uma participação na sociedade.

Sobretudo, Meritíssimo, queremos direitos políticos iguais, porque sem esses direitos nossas deficiências serão permanentes. Sei que isso soa revolucionário aos brancos deste país, porque a maioria dos eleitores será formada por africanos. Esse fato faz o homem branco temer a democracia.

Mas não se pode permitir que esse temor seja um obstáculo à única solução que vai garantir harmonia racial e liberdade para todos. Não é verdade que a extensão do direito de voto a todos resultará em dominação racial. A divisão política baseada na cor é inteiramente artificial e, quando desaparecer, desaparecerá também o domínio de um grupo de cor por outro. O CNA já passou meio século lutando contra o racismo. Quando triunfar, como certamente fará, não mudará essa política.

É isso, portanto, que o CNA combate. Nossa luta é uma luta verdadeiramente nacional. É uma luta do povo africano, inspirada por nosso próprio sofrimento e nossa própria experiência. É uma luta pelo direito de viver. [alguém tosse]

Dediquei toda minha vida a esta luta do povo africano. Lutei contra o domínio branco e lutei contra o domínio negro. Defendi e prezo a ideia de uma sociedade democrática e livre, em que todas as pessoas convivam em harmonia e com oportunidades iguais. É um ideal para o qual eu espero viver e que espero ver realizado. Mas, Meritíssimo, se preciso for, é um ideal pelo qual estou disposto a morrer."

Leia a primeira parte do discurso

Tradução de CLARA ALLAIN


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