Folha de S. Paulo


"Cidade do ódio", Dallas confronta seu passado doloroso

"Daquela janela. Três tiros. Linha reta". Isso, na ponderada opinião do diretor escolar Dick Jewell, que está sentado no muro de pedra da Dealey Plaza, foi todo o necessário para que um vagabundo irrelevante chamado Lee Harvey Oswald assassinasse o presidente John Kennedy, com um rifle comprado por US$ 12, do sexto andar do edifício do depósito estadual de livros do Texas.

Jewell traça a linha da janela de canto até a rua diante de nós: 87 metros. A primeira bala passou sem atingir o presidente, e perfurou o asfalto da rua. A segunda atingiu Kennedy na garganta.

A terceira explodiu a traseira de sua cabeça. "No mundo da conspiração, as coisas nem sempre são como parecem", diz Jewell. "Mas aqueles três tiros certamente criaram oportunidade para que as pessoas questionassem".

À medida que se aproxima o 50º aniversário do assassinato de Kennedy, este mês, Dealey Plaza parece ter voltado no tempo. A praça foi projetada como uma espécie de entrada triunfal para a cidade; trens de carga passam lentamente pelo viaduto em direção do qual a limusine de Kennedy acelerou para levá-lo ao hospital Parkland Memorial, em um esforço por salvá-lo.

Este ano, pela primeira vez Dallas está se preparando para rememorar o aniversário com um evento especial para cinco mil convidados, na manhã de 22 de novembro. A grama do infame "montículo gramado" foi replantada, e os postes de época reparados.

O pedestal de concreto no qual o comerciante de tecidos Abraham Zapruder se posicionou para registrar o mais famoso filme caseiro da história dos Estados Unidos foi repintado. Um punhado de turistas circula pela área, e uma pequena banca vende livros e panfletos recheados de teorias de conspiração.

Depois de anos de negação coletiva com relação ao assassinato, Dallas-Fort Worth, hoje a quarta maior cidade dos Estados Unidos, agora se apresenta como metrópole moderna e cosmopolita, pronta a assumir seu trauma.

"Podemos reconhecer essa importante data histórica e fazer dela uma respeitosa celebração da vida e do legado do presidente Kennedy", disse Mike Rawlings, o prefeito democrata de Dallas.

"Queremos honrar a memória dele e mostrar que Dallas realmente o amava na época e, mais importante, aprendeu a respeitar sua liderança".

É um gesto significativo, dizem historiadores locais. Kennedy não era nada popular no Texas ou com os democratas do sul, e só estava visitando a cidade a fim de firmar o apoio político ao seu esforço de reeleição em 1964.

Já que o crime parecia vasto demais para ser atribuído a um único criminoso, escreveu o historiador William Manchester, Dallas mesma se tornou a cidade em que "eles" mataram Kennedy.

Um mês antes da visita de Kennedy, o embaixador dos Estados Unidos à ONU, Adlai Stevenson [por duas vezes candidato democrata à presidência nos anos 50], havia sido agredido na cidade, onde foi vítima de cusparadas.

Dallas era conhecida como terreno fértil para extremistas. Kennedy disse à mulher que "estamos a caminho da terra dos lunáticos", antes da visita. O assassinato serviu para cimentar essa reputação da cidade.

"Dallas se tornou vítima do acontecido", diz Stephen Fagin, curador assistente do Sixth Floor Museum, no depósito de livros. "Conquistou a reputação de um ambiente hostil e belicoso: 'a cidade do ódio'".

O acontecimento inicial, tendo tomado a forma que tomou devido ao choque das reportagens imediatas sobre o caso, foi seguido pela morte de Oswald, assassinado por Jack Ruby, um proprietário de casa noturna --o primeiro homicídio registrado ao vivo pelas câmeras de TV.

É apropriado, portanto, que o aniversário do acontecido também tenha sua forma ditada pela mídia e pela presença de autores que trataram do caso. De acordo com os bibliotecários do Sixth Floor Museum, em Dealey Plaza, este ano 190 livros relacionados a Kennedy serão publicados.

A crença de que existiu uma conspiração por trás do assassinato já não é tão forte. Embora o relatório da Comissão Warren tenha decidido que Oswald agiu sozinho, um relatório subsequente de um comitê especial de investigação da Câmara dos Deputados sobre assassinatos políticos usou provas sonoras para concluir que um segundo atirador havia disparado contra Kennedy, do chamado "montículo gramado".

Por volta da metade dos anos 70, 89% dos norte-americanos acreditavam que houvesse mais gente envolvida na conspiração, número que caiu hoje a 59%.

"Era insatisfatório aceitar que aquele ex-fuzileiro naval magrelo, simpatizante do comunismo, pudesse eliminar um homem de tamanha estatura", diz Fagin. "E muito mais satisfatório acreditar que havia forças mais sombrias em ação, uma imensa conspiração envolvendo nosso governo ou forças internacionais".

O museu, instalado no piso que Oswald usou para disparar, não assume posição sobre as persistentes teorias de conspiração, se limitando a reconhecer que existem.

A missão da instituição é honrar "a vida e legado de Kennedy, e o registro histórico de seu assassinato, bem como o caos e medo consequentes, colocando-os em contexto relevante", diz Nicola Longford, a diretora executiva da instituição.

Isso cada vez mais significa registrar as experiências das testemunhas oculares como memórias vivas, antes que elas desapareçam. "O 50º aniversário oferece uma oportunidade para que muitos moradores locais falem pela primeira vez. É tudo fascinante, confuso, instigante", ela diz.

Os objetivos do museu coincidem com os de "Parkland", filme que estreia no mês que vem e acompanha as vidas de pessoas comuns que mudaram em função daquele final de semana.

Os astros são Paul Giamatti, como Zapruder, e Zac Ephron, como o Dr. Jim Carrico, o cirurgião do hospital Parkland que operou Kennedy e Oswald para tentar salvá-los.

"Todos vivemos obcecados com o mistério desse homicídio por 50 anos, com a constelação de conspirações", disse o diretor do filme, Peter Landesman, na semana passada. "Jamais pensamos sobre a verdade básica do que realmente aconteceu, sobre o poder disso".

Nancy Myers, 75, que trabalhava como stripper com o nome artístico "Miss Excitement" no Carousel Club, de Jack Ruby, lembra de o chefe ter ido transferir dinheiro para a conta de outra dançarina quando se misturou à multidão que observava a transferência de Oswald, da delegacia local de polícia à cadeia do condado.

"Ele estava abalado, e viu uma oportunidade", conta Myers, explicando por que o chefe matou Oswald com um Colt calibre.38.

Dois terços dos livros na biblioteca de referência do museu são teorias de conspiração. Muitos são produções amadoras. O irmão de Oswald, Roberto, e a mulher do atirador, Marina, que ainda vivem na área, não publicaram suas lembranças.

Fagin acredita que Dallas tenha avançado muito na cura dessas feridas. Ao longo dos anos 70, havia um movimento pela demolição do depósito de livros, o que foi vetado pelo então prefeito Wes Wise, antigo jornalista, que alegava que demolir o edifício não demoliria as lembranças sobre o assassinato, e fatia com que Dallas parecesse estar tentando esconder seus segredos.

Quando o museu foi criado, em 1989, três anos antes que Dealey Plaza fosse incluída na lista federal de monumentos históricos, muita gente temia que, porque Kennedy nunca esteve no edifício, ele se tornasse uma espécie de santuário a Oswald. "O edifício era visto como uma manifestação do mal", diz Fagin.

Os visitantes do museu expressam opiniões muito diferentes. "Foi terrível. Sinto que somos todos responsáveis", diz Mona Montgomery, que havia visto a carreata de Kennedy em Houston no dia anterior. Ela acha que o depósito deveria ser demolido.

"É História", discorda a pessoa que a acompanha. "Não se pode mudar a História". Outros dizem que as teorias de conspiração não estão devidamente representadas. Uma mulher, que não forneceu seu nome, diz que a presidência de Kennedy não seria lembrada caso ele não tivesse sido assassinado.

As feridas podem estar se curando. Da população atual de Dallas, 95% não viviam na cidade em 1964. O aniversário permitirá que Dallas se reconcilie com o acontecido, diz Rawlings.

"O Texas é conservador, mas Dallas é muito progressista. Temos menos de 160 anos de idade, e a cidade era muito diferente quando aquilo aconteceu. Mas é um momento que nos define, porque nos deu a chance de falar com o mundo e de nos tornarmos o que somos como cidade".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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