Folha de S. Paulo


'Maioria da população de Cuba é dissidente', diz jornalista

Há 25 anos morando em Cuba, o americano Marc Frank construiu uma rede de informantes, incluindo amigos e familiares, que faz dele um dos raros jornalistas a antecipar tendências e notícias na hermética ilha governada por Raúl Castro.

Colaborador da agência de notícias Reuters e do "Financial Times", Frank, 61, lançou no mês passado "Cuban Revelations: Behind the Scenes in Havana" (Revelações de Cuba: nos bastidores em Havana), disponível no Brasil em sua versão eletrônica, que descreve os últimos 20 anos de mudanças no país.

O livro conta os motivos históricos, políticos e familiares que levaram o americano a Cuba. Seu avô foi um dos primeiros a escrever sobre a Revolução de 1959 e o resultado foi um livro que o neto acharia décadas depois em um sebo na ilha, povoado de comentários anotados.

O próprio Frank visitaria a ilha nos anos 80, ainda como jornalista de esquerda e militante engajado -do tipo que treinava desempregados nos EUA.

Nos anos 90, já instalado em Cuba e casado com uma enfermeira cubana, se tornaria colaborador dos meios de comunicação britânicos citados e da rede americana ABC. Foi no período que viu os momentos mais terríveis do chamado "período especial", a profunda crise pós-fim da URSS.

Uma década depois, o livro registra como Frank acompanhou o processo no qual a onipresença de Fidel Castro foi perdendo a batalha para a decadência física do ditador.

Como espécie de troféu de trabalho, ele registra que teve seu posto na ilha ameaçado justamente por irritar Fidel com uma reportagem exclusiva sobre a decadência da indústria açucareira -o livro é ainda rico em relatos de viagens pelo interior, local pouco visitado até mesmo por intelectuais e jornalistas que cobrem o país comunista.

Na entrevista concedida à Folha, por telefone, Frank comenta as reformas de Raúl Castro, o papel do Brasil e da Igreja Católica nas transformações da ilha.

No livro, o sr. fala da importância da zona cinzenta, os que querem mudança, em Cuba. Quem são eles?
Marc Frank - Em geral, os chamados dissidentes são pessoas que estão de acordo com o que pensam os países desenvolvidos capitalistas. Mas, na minha opinião, poderíamos chamar a maioria da população de Cuba de dissidente. Por quê? Porque estão vivendo há 20 anos em crise e eles querem mudanças. O que eles não querem necessariamente são as mudanças que os países desenvolvidos querem. Eles têm sua própria visão.

Querem seguir com sua educação, com seu sistema de saúde, com sua defesa civil e em paz. Essa é a zona cinzenta: a massa de gente em Cuba que diz que já é hora de mudar.

A batalha política entre o Partido Comunista e todos os demais atores, que seguramente incluem Miami e Washington, é quem vai captar essa gente. Pode haver cinquenta Damas de Branco marchando, com todo seu espectro e coragem, mas há milhares de camponeses que estão demandando mudanças e estão organizados.

Não devemos olhar só para os dissidentes clássicos, temos de olhar dentro do sistema.

Dá para medir que tamanho tem essa zona cinzenta?
Como digo no livro, no começo dos anos 90, havia entre 20% e 30% da população nessa zona cinzenta. Agora é mais de 50% da população. O governo entende perfeitamente bem a situação. Sob Raúl, houve três debates nacionais.

E nesses debates as pessoas realmente fizeram críticas. E quase tudo que pediram está sendo feito, em suas diferentes formas.

Qual o impacto das redes formais e informais de comunicação sobre esse grupo?
Todos os anos, 150 mil cubanos-americanos vêm a Cuba para visitar. E a cada ano 50 mil cubanos vão aos EUA. E a cada minuto essas pessoas estão falando por telefone. Há 20 anos, não havia nenhuma comunicação. Agora, é massiva. E isso é o mais importante. Com relação à internet e telecomunicações, Cuba tem o pior sistema da América Latina. Somente uma em cada dez casas tem telefone. Menos ainda computadores, menos ainda internet. A comunicação segue terrível. Mas o uso de internet é crescente, mais gente usa e-mails. E isso seguramente é uma mudança importante. Há quatro anos, ninguém tinha celular. E agora quase 2 milhões de pessoas têm celular, e cada celular tem sua câmera. E por isso, obviamente, o governo sabe que tem de ser mais transparente.

O governo é muito atento a isso e está tratando de ver como pode lidar com isso. A verdade é que a maioria dos cubanos, como a maioria em todo lugar do mundo infelizmente, não está interessado em notícias. As pessoas se interessam por beisebol, futebol, novelas. Eu tenho internet na minha casa, e sempre vem muitos vizinhos e jovens utilizá-la na minha casa, e eles quase nunca se interessam pelas notícias. Os jovens querem ver vídeos de música. Isso não significa que eles não tenham interesse em outras coisas. Significa que isso não é a prioridade deles.

Qual o papel da Igreja Católica no processo político cubano?
A Igreja Católica é a oposição mais importante de Cuba. É uma organização nacional, com revistas em cada Província, com apoio financeiro e político de fora, com ideologia diferente da professada pelo Partido. Comunista. A igreja tem um acordo com o governo para a apoiar as reformas, mas a igreja segue falando de uma reforma democrática. Não estamos falando de uma igreja tão grande como no Brasil, mas em Cuba ela é milhões de vezes mais importante que os grupinhos de dissidentes. Tem um papel muito importante, muito construtivo, e bastante crítico.

Raúl faz esse acordo com os católicos porque eles, aqui em Cuba, são muito nacionalistas, estão contra o embargo. Faz todo sentido. Está formando uma frente unida, uma coalizão maior que só o Partido Comunista.

O sr. diz que os sucessores dos Castro terão de construir sua legitimidade. Por quê?
Os Castro e sua geração têm uma legitimidade muito forte em Cuba. Depois deles, quem virá não terá isso, não tem a história deles. Se a população sentir que os dirigentes estão sendo impostos, ou são alguém que eles não respeitam, isso vai ser um problema político, obviamente. Não sabemos o que vai acontecer em quatro ou cinco anos. Não é certo que vá acontecer, mas é uma possibilidade.

O que dá para dizer de Miguel Díaz-Canel, o novo número 2 escolhido neste ano?
É cedo para dizer que tipo de dirigente vai ser. Agora, é como vice-presidente nos EUA, mais protocolar. Não há dúvida de que é inteligente, e isso dizem os estrangeiros que o conhecem. É aberto no contexto do Partido Comunista e pragmático. E é bonito. Todas as mulheres que já estiveram com ele me falam isso. É importante. As mulheres gostam de Fidel, gostam de Díaz-Canel [risos].

E o Brasil? Que papel está tendo nas transformações de Cuba?
O Brasil é o país mais importante da América Latina e um dos mais importantes do mundo. Tem um governo progressista que tem feito um trabalho brilhante até agora, especialmente sob Lula. Os cubanos veem isso. Só o exemplo do Brasil já tem influência sobre Cuba.

Nos últimos anos, forjou-se relações quase estratégicas. E isso se dá por meio de Mariel, por meio dos trabalhos que estão fazendo nos aeroportos [reforma feita pela Odebrecht], os trabalhos que estão fazendo com soja e milho. É do Brasil a primeira companhia estrangeira administrando uma usina de açúcar pela primeira vez desde a revolução [pela Odebrecht]. O Brasil já tem impacto e vai seguir tendo impacto.

E o que esperar do porto de Mariel, que está sendo reformado com financiamento brasileiro e vai ser inaugurado em janeiro? O ministro de Comércio Exterior de Cuba vem promovê-lo no Brasil neste mês.
Todos os especialistas dizem, de maneira geral, que numa primeira etapa o porto vai funcionar e que vai haver lucro. Mas também dizem que será difícil fazer mais se não houver melhores relações com os EUA. Mas a primeira etapa pode funcionar sem os EUA. Não será um boom, não será como se houvesse aberto as relações com os EUA, mas, sim, pode funcionar. Isso é o que dizer os especialistas em navegação, não sou especialista.

Como avalia o ritmo das reformas de Raúl?
O que o governo cubano está tentando fazer é algo muito, muito difícil, que é mudar em muitos sentidos todo o país e todas as regras dos últimos cinquenta anos. E, obviamente, isso acarreta muitos riscos de desestabilização. Então, eles têm esse plano e os estão pondo em prática.

Na minha opinião, as reformas acontecem de forma mais lenta do que eles quereriam, porque eles enfrentam muitos problemas. Resistência, falta de compreensão. Para mim, estão se movendo com muito cuidado porque pensam que tem de agir dessa forma. Se têm razão ou não, é difícil dizer. Penso que, em geral, estão se movendo. Agora mesmo anunciaram que vão mudar a dualidade monetária. No próximo ano, já teremos a primeira zona de desenvolvimento, novas cooperativas. Não é que estão sentando sem fazer nada. Estão se movendo, depois de muitos anos de imobilidade. Outra coisa: quando algo não está funcionando bem, mudam rapidinho, e não demoram anos. Para mim, não é tão lento. Se vão ter êxito ou não, é outra pergunta. Não vamos ter respostas a não ser em alguns anos.

Há consensos sobre as reformas na cúpula política? De onde vem as resistências?
No nível mais alto do país, há um consenso geral sobre a estratégia para as mudanças. Há diferenças sobre como fazer. Penso também que há resistências das quais não se fala: simplesmente não fazem as coisas no nível médio do sistema. No burô político, há consenso sobre o que fazer, e sabem que é muito complicado e perigoso. Mas não vejo que haja muitas facções umas contra as outras. E também há setores que tem interesse econômico em tratar de frear o processo. E também há pessoas que estavam ideologicamente treinados em outro sistema. Raúl tem controle do processo, sim.

O economista cubano Pavel Vidal diz que há muita dependência da planificação central e que isso é um mau sinal nas reformas. O que o sr. diz?
Uma coisa é falarmos do que eu quero, do que você quer, outra é falarmos do que querem os dirigentes de Cuba e bastante gente em Cuba. Penso que para os dirigentes de Cuba e para muita gente em Cuba é quase um processo rápido demais. Há muitos que diante dessas mudanças ficam muito nervosos, ansiosos, porque não sabem o que vai acontecer. Se você quer que Cuba se transforme num país capitalista, é muito muito lento. Os dirigentes do país estão bastante claros: não querem capitalismo.

Pode ser que, daqui a cinco ou seis anos, quando não funcionarem suas reformas, eles podem decidir fazer como Vietnã ou China e ir mais rápido. Mas ainda há muitos problemas com a burocracia, com a planificação. Então, num momento, enquanto uma mão quer a mudança, a outra mão não quer abandonar esse poder, esse controle. E é normal na primeira etapa de qualquer mudança em um país comunista, é uma forma clássica. Isso aconteceu exatamente assim no Vietnã e na China também. Nos primeiros dez anos, foi tudo muito lento, e depois foram mais rápido.

Se não houver uma grave crise, vão esperar até o Congresso do Partido Comunista, em 2016, para avaliar a situação. Essa revisão ocorrerá antes, se ocorrer um grave problema. Há pessoas que pensam que agora eles estão acelerando um pouco o processo porque veem que não estão tendo os resultados que eles querem.

Há quem diga que Cuba está numa espécie de "equilíbrio precário" e que as reformas podem rompê-lo, trazendo desestabilização. O que sr. acha?
Penso que quando um país que Cuba está fazendo, sempre há esse risco. E Cuba segue sob muita pressão externa também, dos EUA e seus aliados. Então, não é fácil. Não é nada certo para onde isso vai. As mudanças são decisões tomadas quando eles não têm nenhuma alternativa a não ser mudar. Até agora, não há problema social. Até agora, não há problemas. Mas há muita ansiedade na população. É um momento bastante delicado. Não há resposta nenhuma sobre isso.

No livro o sr. elenca episódios que poderiam mudar drasticamente os planos em Cuba: grave crise financeira mundial, um super ciclone na ilha... Como Cuba acompanha o governo Maduro na Venezuela, aliado político e econômico de Cuba?
Se há um colapso do governo Maduro isso, seguramente, vai impactar aqui e a situação econômica vai se deteriorar. Pode ser o colapso de Maduro, pode ser a situação internacional, pode ser um superciclone passando por Havana. Tudo isso tende a mudar o pensamento sobre a velocidade das mudanças. Se amanhã os EUA levantam o embargo e diz bem-vindos, isso muda todo o jogo também. Então, isso são coisas que provavelmente não vão acontecer, mas nunca podemos dizer nunca.

Penso que, obviamente, eles têm de estar preocupados [com Maduro]. Não tenho acesso ao processo ao mais alto nível no país, mas é só ver o que Raúl está fazendo desde o princípio, que é mudar as relações com vários países, principalmente o Brasil. Dilma vai vir aqui em janeiro e vai cortar a fita para inaugurar o porto de Mariel. E agora há milhares de médicos que estão no Brasil. Então, Raúl está trabalhando desde o principio para ampliar suas relações com outros países. É um bom militar, nunca põe todos os ovos na mesma cesta.


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