Folha de S. Paulo


América Latina exuma corpos de políticos mortos durante ditaduras

Depois do golpe militar de 1973 no Chile, Pablo Neruda, poeta laureado com o Nobel de literatura e diplomata, foi encontrado morto. Ainda que por muito tempo a informação tenha sido de que ele morreu de câncer na próstata, um juiz recentemente ordenou que seu corpo seja exumado do túmulo em que está sepultado, diante do Oceano Pacífico, para investigar alegações de que o escritor teria sido envenenado.

No mesmo ano do golpe no Chile, os soldados da República Dominicana executaram Francisco Caamaño, líder guerrilheiro e ex-presidente do país. Especialistas forenses recentemente identificaram restos mortais que podem ser dele, quatro décadas depois de sua morte, e esperam ser capazes de identificá-los e de sepultar Caamaño no panteão dos heróis dominicanos.

No Brasil também os fantasmas estão se movimentando: as autoridades decidiram investigar alegações de que dois antigos presidentes civis do país, João Goulart e Juscelino Kubitschek, teriam sido assassinados em 1976. Por falta de outras provas, os investigadores afirmam que em breve devem exumar Goulart, para determinar se foi envenenado por espiões quando vivia em exílio na Argentina, e o motorista de Kubitschek, para determinar se ele foi atingido pelo disparo de um atirador de tocaia, causando o acidente de automóvel em que ele e o ex-presidente morreram.

Em país após país, a América Latina está passando por uma onda de exumações, o que reflete não só a dificuldade que algumas figuras políticas enfrentam para encontrar a serenidade no além mas a disposição da região de ressuscitar questões e disputas não resolvidas quanto à sua história, mesmo que isso torne necessário literalmente desenterrar o passado.

"Onde a história ainda não está decidida, os mortos heroicos continuam a falar", diz Lyman Johnson, professor emérito da Universidade da Carolina do Norte que estudou a tradição latino-americana da exumação.

O recente ciclo de exumações remete a padrões vistos anteriormente na região, que tem uma tradução de exumar cadáveres proeminentes e submetê-los a escrutínio notavelmente intrusivo, alegando, ao fazê-lo, que o exercício serve a propósitos políticos.

Alguns centros tradicionais da febre de exumações, como o México, se acalmaram um pouco. Nos anos 20, os líderes mexicanos ordenaram a exumação de figuras importantes na guerra de independência do país, para sepultá-las em um monumento. O frenesi surgido no México dos anos 40 quanto a restos mortais contestados que poderiam ser do soberano asteca Cuauhtémoc e do conquistador espanhol Hernán Cortés também passou.

Agora outros países, com o Chile na vanguarda, parecem estar assumindo a liderança do processo, agora. Salvador Allende, o presidente chileno derrubado pelo golpe militar de 1973, foi exumado em 2011, para que investigadores pudessem determinar se ele cometeu suicídio ou foi morto por seus adversários quanto estes invadiram o palácio presidencial. Eles concluíram que Allende se matou com tiros de um fuzil de assalto AK-47, confirmando a versão oficial.

Uma exumação anterior no Chile, do cadáver de Eduardo Frei Montalva, presidente do país entre 1964 e 1970, produziu constatações dramáticas que encorajaram novas exumações, no Chile e em outros países. Os médicos haviam afirmado originalmente que Frei morreu em 1982 de complicações causadas por uma cirurgia que realizou para corrigir um problema estomacal, mas os investigadores descobriram que ele foi envenenado com pequenas doses de gás mostarda e tálio, um metal pesado altamente tóxico.

A América Latina está longe de ser a única região em que figuras políticas e intelectuais terminam exumadas, como o demonstra a exumação, em 2012, do cadáver de Yasser Arafat, por muito tempo o líder da luta palestina, a fim de investigar alegações de envenenamento. Na Espanha, houve tentativas de localizar e identificar os restos mortais do poeta Federico García Lorca e de outras vítimas da guerra civil espanhola.

Mas quer o objetivo seja resolver mistérios sobre mortes de figuras famosas ou promover histórias de heroísmo, a América Latina é uma região onde exumar os mortos e ocasionalmente até mesmo mutilar seus restos mortais é um traço marcante da política. Os estudiosos afirmam que a prática pode ser uma continuação laica de costumes que datam do começo da era cristã, quando existia um vibrante comércio de partes de corpos de santos.

O Brasil, o maior país latino-americano, tem seus precedentes, que incluem o transporte de restos mortais através do Oceano Atlântico para reforçar a narrativa quanto ao surgimento do país como nação independente. Nos anos 30, o regime autoritário de Getúlio Vargas recolheu os restos mortais dos inconfidentes, participantes de um movimento separatista do século 18, de seus locais de sepultamento na África, onde haviam morrido no exílio, para sepultá-los em Minas Gerais.

E em 1972, os militares exumaram Pedro 1º, o primeiro imperador do Brasil independente, em Portugal e transferiram seu corpo a um monumento em São Paulo. (Curiosamente, a operação não incluiu o coração do imperador, que continua em uma igreja do Porto, em Portugal, como seu testamento dispôs.)

Pedro 1º foi removido de sua cripta imperial ainda outra vez este ano, como objeto de estudo científico, um reflexo dos avanços na análise bioquímica e nos testes de ADN. Outras exumações brasileiras envolvem utilizar esses métodos para investigar mistérios mais recentes, como o caso de Goulart, presidente derrubado em 1964 por um golpe militar que contou com o apoio dos Estados Unidos.

Citando o depoimento de um antigo agente da inteligência uruguaia, a família de Goulart alega que ele não morreu de um ataque cardíaco, aos 58 anos em seu exílio na Argentina, como foi reportado em 1976, mas sim envenenado por agentes envolvidos na Operação Condor, uma campanha conjunta das ditaduras militares sul-americanas, nas décadas de 70 e 80, para o sequestro e assassinato de políticos dissidentes.

"Tudo nos leva a crer que ele tenha sido assassinado", diz João Vicente Goulart, 56, empresário e filho do presidente. "Tudo que precisamos é de provas".

A Comissão da Verdade, que está examinando os abusos da longa ditadura brasileira, está se preparando para exumar Goulart; a decisão conta com o apoio até daqueles que não acreditam que ele tenha sido envenenado.

"Os restos dele devem ser examinados, nem que apenas para pôr fim às teorias da conspiração e permitir que descanse em paz", diz Iberê Athayde Teixeira, escritor de São Borja, a cidade em que Goulart está enterrado, no sul do Brasil.

Ecoando nas recentes experiências chilenas, algumas das novas exumações brasileiras, embora tenham raízes em uma história política disputada, têm caráter distinto de operações semelhantes realizadas no passado.

"Este é um regime democrático que por fim, e já não era sem tempo, está tentando encarar seu passado", diz Kenneth Maxwell, historiador britânico e colunista do jornal "Folha de S. Paulo". "O objetivo não é a criação de mitos, mas uma tentativa de revelar um passado que foi ocasionalmente muito feio".

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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