Folha de S. Paulo


Após Nobel, brasileiro e americano trocam ataques por demissão na Opaq

Mais de uma década antes de o Prêmio Nobel da Paz ser dado à agência internacional que monitora as armas químicas, John R. Bolton entrou no gabinete do diretor geral dela para lhe informar que ele seria destituído..

"Ele me disse que eu tinha 24 horas para pedir demissão", contou José Maurício Bustani, o então diretor geral da Organização para a Proibição de Armas Químicas (Opaq), em Haia. "E que, se não o fizesse, enfrentaria as consequências."

Bolton, na época subsecretário de Estado dos EUA e mais tarde embaixador americano nas ONU, disse a Bustani que a administração Bush estava insatisfeita com seu estilo de gestão.

Mas Bustani, 68 anos, que tinha sido reeleito por unanimidade apenas 11 meses antes, se recusou a pedir demissão. Semanas depois, em 22 de abril de 2002, ele foi afastado numa sessão especial da organização de combate às armas químicas, que tem 145 países-membros.

A história por trás de sua destituição vem sendo alvo de interpretações e especulações há anos, e Bustani, que é diplomata brasileiro, manteve um perfil baixo desde então. Mas, com a Opaq tendo feito manchetes na semana passada com a notícia do Prêmio Nobel de Paz, ele concordou em comentar o que afirmou ter sido a razão real de seu afastamento: o receio da administração Bush de que inspeções de armas químicas no Iraque entrassem em conflito com os argumentos usados por Washington para invadir esse país. Vários altos funcionários envolvidos nos fatos, alguns dos quais falando publicamente sobre eles pela primeira vez, confirmaram sua versão sobre o que aconteceu.

Bolton insiste que Bustani foi destituído por incompetência. Em entrevista telefônica na sexta-feira, ele confirmou que confrontou Bustani. "Eu disse a ele que, se saísse voluntariamente, lhe daríamos uma saída com dignidade."

De acordo com o relato de Bustani, a campanha contra ele começou no final de 2001, depois de o Iraque e a Líbia terem indicado que queriam fazer parte da Convenção sobre Armas Químicas, o tratado internacional fiscalizado pela Opaq. Para fazerem parte, os países precisam apresentar uma lista de seus estoques de armas químicas e aceitar que os estoques sejam inspecionados e destruídos. Foi o que fez a Síria no mês passado, depois de se candidatar. Bustani disse que inspetores da Opaq estavam planejando visitar o Iraque no final de janeiro de 2002.

"Tivemos muitas discussões porque sabíamos que seria difícil", disse Bustani, hoje embaixador do Brasil na França, falando na embaixada brasileira em Paris. Os planos, que ele tinha transmitido a vários países, teriam provocado "furor em Washington". Em pouco tempo, Bustani estava recebendo avisos de diplomatas americanos e outros.

"No final de dezembro de 2001, ficou claro que os americanos eram sérios em sua intenção de se livrarem de mim", contou o embaixador. "As pessoas estavam me dizendo: 'Querem sua cabeça'."

Bolton visitou Bustani novamente. "Tentei persuadi-lo a não fazer a organização votar", contou Bolton.

Mas Bustani se negou novamente, e seu destino estava traçado. Os Estados Unidos tinha convocado seus aliados, e, numa sessão extraordinária, Bustani foi destituído por 48 votos contra 47, com 43 abstenções. Ele teria sido o primeiro chefe de uma organização internacional a ser afastado do cargo dessa maneira. Alguns diplomatas disseram que a campanha de pressão os deixou perturbados.

Diplomatas disseram que o gabinete de Bolton tinha circulado um documento acusando Bustani de conduta abrasiva e de tomar "iniciativas impensadas" sem consulta prévia aos EUA e outros países membros.

Mas Bustani e alguns altos funcionários, tanto no Brasil quanto nos EUA, dizem que Washington agiu porque acreditou que a organização chefiada por Bustani ameaçava tornar-se um obstáculo aos planos da administração de invadir o Iraque. A título de justificativa, Washington estava dizendo que o líder iraquiano, Saddam Hussein, possuía armas químicas, mas Bustani disse que os especialistas da Opaq lhe transmitiram que essas armas tinham sido destruídas na década de 1990, após a Guerra do Golfo.

"Todo o mundo sabia que não havia armas químicas", disse ele. "Uma inspeção teria deixado evidente que não havia armas a destruir. Isso invalidaria completamente a decisão de invadir o país."

Bolton contestou esse relato. "Ele [Bustani] apresentou esse argumento após nossa invasão", disse. Em dois momentos durante a entrevista, Bolton disse: "O tipo de pessoa que acredita nesse argumento é o tipo que cobre as orelhas com papel-alumínio para barrar ondas cósmicas".

Diplomatas em Haia, contudo, afirmaram que as autoridades de Washington fizeram circular um documento dizendo que, sob a liderança de Bustani, a agência de inspeção de armas químicas buscava "um papel inapropriado no Iraque", algo que era, na realidade, um assunto a ser encaminhado ao Conselho de Segurança da ONU.

Entrevistada ao telefone desde Washington no sábado, a diplomata de carreira Avis Bohlen, que foi vice de Bolton até se aposentar, comentou que outros, além de Bolton, acreditavam que Bustani tivesse "transposto alguns limites" em relação ao Iraque e outras questões. "O episódio foi muito desagradável para todos os envolvidos", disse.

Falando em São Paulo no sábado, o ex-chanceler brasileiro Celso Lafer contou que no início de 2002 foi chamado para um encontro particular com o secretário de Estado americano Colin L. Powell, que um ano antes tinha elogiado a liderança de Bustani, em carta.

Powell teria dito a Lafer: "Tenho gente na administração que não quer que Bustani continue no cargo, e meu papel é informar você disso."

"Foi um processo complicado", Lafer recordou, "com os Estados Unidos, e especialmente John Bolton e Donald Rumsfeld, querendo a cabeça de Bustani."

"Minha visão", prosseguiu, "é que os neoconservadores queriam liberdade para agir sem restrições multilaterais e, com Bustani querendo atuar com mais independência, isso limitaria a liberdade de ação deles."

Na sexta-feira, enquanto recebia uma enxurrada de mensagens em seu gabinete, Bustani se disse gratificado com a notícia do Nobel da Paz e que não lamenta sua época à frente da Opaq. "Tive que começar do começo, criar um código de conduta, um programa de assistência técnica", contou. "Quase dobramos o número de países-membros."

Ele refletiu sobre o contraste entre Iraque e Síria. Inspetores da Opaq estão na Síria agora, catalogando os arsenais de armas químicas do governo, como passo para frente na guerra civil síria, que já está em seu terceiro ano.

"Em 2002, os EUA estavam determinados a se opor à entrada do Iraque na convenção contra as armas químicas, que ele nem possuía", disse Bustani. "Desta vez, ingressar na convenção e ter os inspetores presentes faz parte do plano de paz para a Síria. É uma mudança fundamental."


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