Folha de S. Paulo


General Vo Nguyen Giap expulsou França e EUA do Vietnã

Vo Nguyen Giap, o general norte-vietnamita implacável e carismático cujas campanhas expulsaram do Vietnã tanto a França como os Estados Unidos, morreu nesta sexta-feira em Hanói.

Consta que tinha 102 anos.

A morte foi noticiada por vários veículos de imprensa vietnamitas, incluindo o respeitado "Tuoi Tre Online", segundo o qual o general morreu num hospital do Exército.

O general Giap foi um dos últimos sobreviventes de uma geração de revolucionários comunistas que nas décadas do pós-Guerra libertou o Vietnã do jugo colonial e combateu uma superpotência até levá-la a um impasse.

Em seus últimos anos de vida, era uma lembrança viva de uma guerra que é história antiga para a maioria dos vietnamitas, muitos dos quais nasceram depois dela.

Mas ele não tinha caído no esquecimento. Era visto como estadista aposentado e respeitado, alguém cujas posições de linha dura se abrandaram após o término da guerra que unificou o Vietnã.

Giap defendeu as reformas econômicas e o estreitamento dos laços com os Estados Unidos, ao mesmo tempo em que falou publicamente dos perigos da ampliação da influência chinesa e dos custos ambientais da industrialização.

Para seus adversários americanos, entre o início dos anos 1960 e meados dos anos 1970 ele talvez tenha perdido em importância apenas para seu mentor, Ho Chi Minh, como símbolo de um inimigo tão implacável com suas próprias forças quanto com seus inimigos.

Para os historiadores, sua disposição de suportar perdas esmagadoras diante do poder de fogo americano superior foi uma das grandes razões pelas quais a guerra se arrastou por tanto tempo, deixando mais de 2,5 milhões de mortos -58 mil dos quais americanos-, exaurindo o Tesouro americano e a vontade política de Washington de combater e dividindo até hoje o país numa discussão sobre o seu papel no mundo.

Professor e jornalista que não tinha formação militar, Vo Nguyen Giap (pronuncia-se vo nuin zap) uniu-se à insurgência comunista maltrapilha na década de 1940 e a converteu numa força altamente disciplinada, que, ao longo de 30 anos de revolução e guerra civil, pôs fim a um império e uniu uma nação.

Charmoso e volúvel, era um historiador militar erudito e um nacionalista ferrenho, que usava seu carisma pessoal para motivar os soldados e reforçar a devoção deles ao seu país. Seus admiradores o incluem no ranking dos grandes líderes militares do século 20, ao lado do americano MacArthur e do alemão Rommel, entre outros.

Para seus críticos, porém, as vitórias de Giap foram erguidas sobre um grande descaso pela vida de seus soldados. O general William C. Westmoreland, que comandou as forças americanas no Vietnã entre 1964 e 1968, disse: "Qualquer comandante americano que suportasse as mesmas baixas imensas que o general Giap suportou não teria durado três semanas no cargo".

O general Giap, porém, entendeu algo que seus adversários não compreenderam. Desde o início ele descobriu que contar com a lealdade dos camponeses vietnamitas era mais crucial que controlar a terra na qual eles viviam. Como Ho Chi Minh, ele acreditava profundamente que os vietnamitas se disporiam a pagar qualquer preço para libertar sua terra dos exércitos estrangeiros.

Ele também sabia de outra coisa, da qual tirou pleno proveito: que travar guerras na era da televisão dependia tanto da propaganda política quanto do êxito em campo.

Essas lições foram demonstradas na ofensiva do Tet, em 1968, quando as forças norte-vietnamitas e os guerrilheiros vietcongues atacaram dezenas de alvos militares e capitais provinciais no Vietnã do Sul apenas para serem rechaçados com baixas esmagadoras. O general Giap tinha previsto que a ofensiva desencadearia levantes e mostraria aos vietnamitas que os americanos eram vulneráveis.

Militarmente falando, foi um fracasso. Mas a ofensiva aconteceu no momento em que a oposição à guerra ganhava força nos Estados Unidos, e a selvageria dos combates, exibida pela televisão, suscitou nova onda de protestos.

O presidente Lyndon Johnson, que meses antes do Tet vinha contemplando a possibilidade de se aposentar, decidiu não tentar se reeleger, e com a reeleição de Richard Nixon, em novembro, teve início a prolongada retirada das forças americanas.

O general Giap tinha estudado os ensinamentos militares de Mao Tse-tung, que escreveu que a doutrinação política, o terrorismo e a guerra prolongada de guerrilha eram pré-requisitos para uma revolução bem-sucedida.

Usando essa estratégia, Giap defendeu a elite do Exército francês e sua famosa Legião Estrangeira em Dien Bien Phu, em maio de 1954, expulsando a França da Indochina e conquistando a admiração dos franceses, mesmo que a contragosto.

"Ele aprendeu com seus erros e não os repetiu", disse o general Marcel Bigeard, que quando jovem coronel das tropas de paraquedistas franceses rendeu-se em Dien Bien Phu, a um dos biógrafos do general Giap, Peter G. McDonald. Mas, disse ele, "para Giap, a vida de um homem não valia nada".

As estimativas de baixas feitas por Hanói eram pouco confiáveis; assim, é provável que o custo das vitórias do general Giap nunca seja conhecido.

Cerca de 94 mil soldados franceses morreram na guerra para conservar o Vietnã, e a luta pela independência custou a vida de 300 mil combatentes vietnamitas, segundo estimativas conservadoras. Na guerra americana, morreram cerca de 2,5 milhões de vietnamitas do norte e do sul, numa população total de 32 milhões. Os EUA perderam mais ou menos 58 mil militares.

"Centenas de milhares de pessoas morrem a cada minuto neste mundo", o general Giap teria observado após a guerra com a França. "A vida ou a morte de cem, mil ou dezenas de milhares de seres humanos, mesmo nossos compatriotas, significa pouco."

Vo Nguyen Giap nasceu em 25 de agosto de 1911, ou, segundo algumas fontes, 1912, no vilarejo de An Xa, na província de Quang Binh, na parte mais meridional do que mais tarde viria a ser o Vietnã do Norte. Seu pai, Vo Quang Nghiem, era um agricultor instruído e nacionalista fervoroso que incentivou seus filhos a resistir aos franceses, como também havia feito seu avô.

Giap se formou em direito e economia política em 1937 e lecionou história na escola Thanh Long, uma instituição particular para vietnamitas ricos em Hanói, tendo ficado conhecido pela intensidade de suas aulas sobre a Revolução Francesa. Ele também estudou Lênin e Marx. Ficou impressionado particularmente com as teorias de Mao sobre a combinação de estratégia política e militar para vencer uma revolução.

Em 1941, Ho Chi Minh, o fundador do Partido Comunista vietnamita, escolheu Giap para comandar o Viet Minh, a ala militar da Liga de Independência do Vietnã.

No final de 1953, os franceses estabeleceram um reduto no noroeste do país, em Dien Bien Phu, perto da fronteira com o Laos, reforçado por 13 mil homens de tropas coloniais vietnamitas e do norte da África, além das melhores tropas do Exército francês e a Legião Estrangeira, de elite.

Cercadas pelas forças comunistas durante oito semanas, as últimas forças francesas foram derrotadas em 7 de maio de 1954.

O timing foi um golpe de mestre político, já que a derrota se deu no próprio dia em que negociadores se reuniram em Genebra para discutir um acordo. Confrontados com o fracasso de sua estratégia, os negociadores franceses se renderam e acordaram a retirada do país. O Vietnã se dividiu entre o Norte, de governo comunista, e o Sul, não comunista.

No final dos anos 1950 e início da década de 1960, os presidentes Dwight Eisenhower e, mais tarde, John Kennedy observaram com ansiedade crescente as forças comunistas intensificarem a guerra de guerrilha. Quando Kennedy foi assassinado, em Dallas, em 1963, os EUA já tinham mais de 16 mil soldados no Vietnã do Sul.

O general Westmoreland confiou na superioridade de armamentos para travar uma guerra de atrito na qual media o sucesso pelo número de inimigos mortos. Embora os comunistas perdessem em qualquer contagem comparativa de mortos, o general Giap não demorou a perceber que os bombardeios indiscriminados e o poder de fogo avassalador dos americanos causaram pesadas baixas civis e levaram muitos vietnamitas a distanciarem-se do governo que os americanos apoiavam.

Com a guerra num impasse, e os americanos cada vez mais avessos a aceitar baixas, o general Giap disse a um entrevistador europeu que o Vietnã do Sul era "um poço sem fundo para os americanos".

No dia 30 de janeiro de 1968, durante um cessar-fogo em honra ao Ano Novo vietnamita (chamado Tet Nguyen Dan), 84 mil norte-vietnamitas atacaram bases militares e cidades em todo o Vietnã do Sul, naquilo que viria a ser conhecido como a ofensiva do Tet.

Para os comunistas, as coisas deram errado desde o começo. Algumas unidades vietcongues atacaram precocemente, sem aguardar o apoio de tropas regulares, conforme o previsto. Esquadrões suicidas, como aquele que penetrou na Embaixada dos Estados Unidos em Saigon, provocaram algumas baixas e muitos danos, mas foram eliminados rapidamente.

A despeito de algumas vitórias -os norte-vietnamitas entraram na cidade de Hue e a dominaram por três semanas-, a ofensiva foi um desastre militar. Os levantes pelos quais se esperava nunca chegaram a acontecer, e foram mortos ou feridos cerca de 40 mil combatentes comunistas. O Viet Cong nunca recuperou a força que tinha tido antes do Tet.

Mas a ferocidade da ofensiva demonstrou a determinação de Hanói de vencer a guerra, abalando o público e a liderança americanos.

"A ofensiva do Tet foi dirigida principalmente contra a população do Vietnã do Sul", declarou o general Giap mais tarde, "mas acabou por afetar mais a população dos Estados Unidos. Até o Tet, os americanos pensavam que poderiam vencer a guerra, mas com a ofensiva, souberam que não poderiam."

Giap disse ao jornalista Stanley Karnow, em 1990: "Queríamos mostrar aos americanos que não estávamos exauridos, que podíamos atacar seus arsenais, suas comunicações, suas unidades de elite, até mesmo seus quartéis-generais, os cérebros por trás da guerra".

"Queríamos projetar a guerra para dentro das casas das famílias da América, porque sabíamos que a maioria dos americanos não tinha nada contra nós."

O governo americano iniciou negociações de paz em Paris em maio de 1968. No ano seguinte, Nixon deu início à retirada das tropas americanas, sob sua política de vietnamização, pela qual as tropas sul-vietnamitas suportariam o ônus maior dos combates.

Em março de 1972, os norte-vietnamitas lançaram a Ofensiva de Páscoa em três frentes, ampliando as áreas sob seu controle no Camboja e no Laos e obtendo avanços temporários no Vietnã do Sul. Mas a ofensiva acabou derrotada, e o general Giap novamente foi criticado fortemente pelas baixas pesadas. No verão de 1972, ele foi substituído pelo general Van Tien Dung, possivelmente porque teria desagrado ao regime, mas possivelmente, conforme boatos que circularam, porque teria a doença de Hodgkin's.

Apesar de ter sido afastado do comando direto das forças militares em 1973, Giap continuou a ser o ministro da Defesa, tendo supervisionado a vitória final do Vietnã do Norte sobre o Vietnã do Sul e os Estados Unidos, com a queda da capital do sul, Saigon, em 30 de abril de 1975.

Ele também guiou a invasão do Camboja, em janeiro de 1979, que derrubou o brutal Khmer Vermelho comunista. No mês seguinte, depois de Hanói ter estabelecido um governo novo em Phnom Penh, tropas chinesas atacaram ao longo da fronteira norte-vietnamita para que não restassem dúvidas de que a China ainda era a potência regional maior.

Foi a última campanha militar de Giap. Ele foi afastado do cargo de ministro da Defesa em 1980, depois de seus rivais principais, Le Duan e Le Duc Tho, o terem afastado do Politburo. Importante demais para ser denunciado abertamente, ele foi em vez disso nomeado vice-primeiro-ministro para a Ciência e a Educação.

Mas seus dias de poder real tinham terminado. Em agosto de 1991, ele foi afastado, juntamente com outros altos funcionários, com a chegada ao poder de Vo Van Kiet, reformista de estilo ocidental.

Em seus últimos anos de vida, o general Giap recebeu visitantes estrangeiros em sua residência em Hanói, onde lia extensamente obras de literatura ocidental, ouvia Beethoven e Liszt e converteu-se à promoção do socialismo por meio de reformas de mercado livre. Seu pensamento tinha mudado.

"No passado, nosso maior desafio era a invasão de nosso país por estrangeiros", ele explicou a um entrevistador. "Agora que o Vietnã é independente e unificado, podemos enfrentar nosso desafio maior. Esse desafio é a pobreza e o atraso econômico."

Em 1989, ele disse ao jornalista Neil Sheehan que esse desafio vinha sendo empurrado com a barriga havia muito tempo. "Nosso país é como um doente que sofre há muito tempo. Os países à nossa volta fizeram muitos avanços. Nós estávamos em guerra."

Com reportagem de Seth Mydans

Tradução de Clara Allain


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