Folha de S. Paulo


Análise: Lei de saúde assusta republicanos porque agrada eleitores

No segundo trimestre, a Câmara de Comércio do Missouri instou o Legislativo estadual a aceitar o plano do governo federal para expandir a assistência do programa Medicaid aos pobres e deficientes.

O grupo de lobby empresarial não tinha repentinamente renegado suas ideias. Eis como Daniel Mehan, o presidente da organização, resumiu seus sentimentos quanto à lei de reforma da saúde do presidente Barack Obama: "Não gostamos dela".

Mas a Câmara estava informada sobre a situação de seus membros diretamente afetados pela questão: dezenas de hospitais do Missouri estavam destinados a perder US$ 4,2 bilhões em assistência federal por tratamentos não remunerados, em prazo de seis anos, caso o Estado se recusasse a elevar o piso de renda que torna uma pessoa elegível para receber o Medicaid.

O pragmatismo sugeria aceitar a expansão. Washington pagaria o custo adicional integralmente por três anos e depois arcaria com 90% da conta.

E isso expandiria a cobertura de saúde nos condados rurais pobres, predominantemente brancos, que costumam consistentemente eleger legisladores republicanos.

O Legislativo do Missouri, controlado pelos republicanos e repleto de lideranças ligadas ao Tea Party, mesmo assim rejeitou a expansão do Medicaid no Estado.

Depois da votação, um editorial frustrado no "Missourian", um jornal confortavelmente conservador, perguntou aos republicanos que ocupam cargos eletivos no Estado sobre quem exatamente eles representavam.

Hoje, as mesmas forças que bloquearam a expansão do Medicaid no Missouri estão se esforçando ao máximo em Washington para demolir completamente a Lei de Acesso à Saúde. Cedendo à veemência de sua ala Tea Party, a bancada republicana da Câmara forçou uma paralisação das atividades do governo quando os democratas do Senado recusaram cortar as verbas ou postergar a reforma da saúde de Obama.

Os republicanos da Câmara estão ameaçando causar ainda mais estrago se não conseguirem o que querem, possivelmente causando caos financeiro se conseguirem forçar os Estados Unidos a decretar a primeira moratória de sua dívida federal na história do país.

Os esforços dos republicanos despertam a mesma perplexidade e a mesma pergunta feita pelo "Missourian": O que está levando os republicanos do Tea Party e seus patrocinadores financeiros a agir assim? Que cálculo os convence de que repelir a lei de saúde vale o risco? Os interesses de quem eles representam?

Quase 60% dos americanos reprovam a tentativa de impedir que a lei de reforma entre em vigor pelo bloqueio de suas verbas.

É tentador descartar os ativistas do Tea Party que vêm conduzindo as ações do Partido Republicano como malucos --e alguns comentaristas o fizeram--, definindo-os como motivados pelo medo e dispostos a acreditar que a moratória não causará grande mal e pode até ter efeito purgante e libertar a economia de um governo que sofre de inchaço.

"Eles não ouvem a ninguém a não ser eles mesmos", me disse Theda Skopcol, cientista política da Universidade Harvard. "Estão convencidos de sua retidão e de que só eles estão qualificados para salvar os Estados Unidos da ameaça que Obama e suas políticas representam. E terminaram por se colocar em posição perigosa."

Existe uma alternativa plausível à irracionalidade, como explicação. Por mais falho que seja, o Obamacare (nome pelo qual a Lei de Acesso à Saúde é conhecida popularmente) pode mudar fundamentalmente a relação entre os americanos de classe trabalhadora e o seu governo. E isso representaria ameaça vital à crença em um governo pequeno que define o Partido Republicano há quatro décadas.

A lei é imperfeita. Tem dezenas de partes complicadas que se entrelaçam. Metade dos americanos diz não compreender como ela afetará suas vidas e suas famílias.

Mas ainda assim, ela contém muitas cláusulas que devem melhorar a vida de milhões de americanos, entre os quais aquilo que chamamos de classe média trabalhadora.

Quase dois terços dos americanos desprovidos de cobertura de saúde têm empregos em tempo integral, de acordo com a Kaiser Family Foundation. Outros 16% deles têm empregos de tempo parcial.

O Departamento da Saúde e Recursos Humanos dos Estados Unidos recentemente estimou que quase 60% dos americanos desprovidos de planos de saúde se qualificariam para planos no mercado por menos de US$ 100 ao mês.

De acordo com uma análise do Urban Institute, 28 milhões de americanos desprovidos de planos de saúde passariam a contar com cobertura, sob o Obamacare. Desses, oito milhões têm mais que o dobro da renda definida como limiar de pobreza para uma família de quatro pessoas, US$ 47,1 mil ao ano. A maioria dessas pessoas receberia subsídios para bancar seus planos de saúde.

E a realidade é que o grupo que representa a base demográfica do Tea Party-- homens brancos de classe trabalhadora com idade de entre 45 e 64 anos-- se sairia bem sob a nova lei.

Mesmo os americanos que dizem não gostar da lei aprovam muitos de seus componentes. Mais de 75% deles aprovam o fornecimento de assistência financeira aos cidadãos de renda baixa e moderada para a compra de planos de saúde.

Dois terços aprovam a cláusula que proíbe às operadoras de planos negar cobertura a alguém por conta de seu histórico médico. Três quartos aprovam a cláusula que permite manter filhos cobertos pelos planos de saúde de seus pais até os 26 anos de idade.

Até agora, diz Skopcol, os programas de previdência social dos Estados Unidos exibiam um "grande buraco", relacionado aos americanos não pobres de classe trabalhadora e seus filhos. E o Obamacare vai eliminar boa parte desse buraco.

"Os principais beneficiários tenderão a ser trabalhadores de baixos salários, empregados por companhias menores que não oferecem planos de saúde", diz ela. "Não são os idosos. E tampouco os cidadãos mais pobres."

E essas pessoas podem se sentir gratas aos democratas pelos benefícios.

Para os republicanos conservadores, perder uma grande fatia da classe média para os democratas poderia justificar medidas extremas.


Tradução de PAULO MIGLIACCI


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