Folha de S. Paulo


Análise: Milhões de católicos esperavam por um papa que falasse como Francisco

Esta será uma semana interessante para o papa Francisco. Sua "contracúria" --um grupo de oito cardeais de países diversos, escolhidos em parte por serem conhecidamente contrários ao modo como o Vaticano tem sido comandado-- vai se reunir pela primeira vez.

O papa já anunciou que eles formarão um conselho permanente. Embora a nova entidade talvez não sobreviva a ele, fica clara a intenção de afastar o planejamento estratégico da Igreja da Cúria, o "funcionalismo público" permanente do Vaticano.

Antes de esse comitê apresentar um relatório, há a entrevista notável que o papa deu ao editor do "La Repubblica" --um católico que se converteu em ateu-- que o jornal publicou com destaque na manhã desta terça-feira. Ele segue a mesma linha que a entrevista anterior dada por Francisco a outro jesuíta, só que nesta o papa fala com franqueza ainda maior.

"A Cúria, como um todo, é... aquilo que no Exército é conhecido como a intendência: ela administra os serviços que atendem à Santa Sé. Mas possui um defeito: é 'vaticano-cêntrica'. Ela enxerga e cuida dos interesses do Vaticano, que, em sua maioria, ainda são interesses temporais. Esta visão vaticano-cêntrica ignora o mundo que nos cerca. Não compartilho essa visão e farei tudo o que estiver ao meu alcance para mudá-la."

Mais adiante, numa frase extraordinária, Francisco diz: "Os chefes da Igreja têm em muitos casos sido narcisistas, adulados por seus cortesãos e tendo se deixado levar por essa emoção. A corte é a lepra do papado."

Há momentos em que é quase impossível acreditar que é um papa falando: "O proselitismo é bobagem solene, não faz sentido. Precisamos conhecer uns aos outros, ouvir uns aos outros e aumentar nosso conhecimento do mundo que nos cerca. O mundo é atravessado por caminhos que se aproximam e se distanciam, mas o importante é que eles levam ao bem."

Ainda mais surpreendente: "Cada um tem sua própria ideia do bem e do mal e precisa escolher seguir o bem e combater o mal conforme os concebe. Bastaria isso para fazer do mundo um lugar melhor."

É realmente difícil imaginar qualquer coisa mais oposta ao espírito do catolicismo "fortaleza" e das doutrinas de que "quem erra não tem direitos" e "não existe salvação fora da igreja".

Nada disso faz do papa um liberal, exatamente. Ele diz que o santo de quem se sente mais próximo é Agostinho (que também foi o santo que norteou Lutero), que articulou a doutrina do pecado original.

Na verdade, não posso deixar de pensar que se Lutero tivesse continuado a ser um frade agostiniano e, quem sabe, se tornado papa, ele próprio teria soado muito como o papa Francisco, tirando seu antissemitismo, algo que Francisco repudia explicitamente.

Mas ele tampouco é condescendente com os neoliberais. "Acho que o chamado liberalismo irrestrito apenas fortalece os fortes, enfraquece os fracos e exclui os mais excluídos. Precisamos de muita liberdade, nenhuma discriminação, nenhuma demagogia e muito amor. Precisamos de regras de conduta e também, se necessário, de intervenção direta do Estado para corrigir as desigualdades mais intoleráveis."

Aconteça o que mais acontecer, este papado será interessantíssimo de se observar, entre outras razões porque, embora falemos que o papa conduz sua igreja, o papa sabe muito bem que existem muitíssimos católicos, nem todos os quais sacerdotes, que estão determinados a não seguir o rumo que ele lhes aponta.

Por outro lado, há milhões em todo o mundo que esperavam há décadas por um papa que fala assim.


Tradução de CLARA ALLAIN


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