Folha de S. Paulo


Opinião: Linguagem distorcida na Síria

George Orwell observou que a linguagem política foi concebida para "fazer com que mentiras soem verdadeiras, com que o homicídio pareça respeitável e para gerar a impressão de solidez ao simples vento".

Não é coincidência que a linguagem relevante seja uma das primeiras vítimas dos sistemas repressivos. Liberdade de expressão, liberdade de imprensa e liberdade de reunião eram direitos garantidos pela constituição soviética. Mas, evidentemente, nada significavam.

Vladimir Putin, presidente russo e antigo agente do KGB, foi educado naquele ambiente. Isso transparece. "Não estamos protegendo o governo sírio, mas a lei internacional", escreveu ele recentemente em artigo para o "New York Times".

Na verdade, Moscou vem sendo o defensor indispensável de Bashar al-Assad desde o começo de um conflito que já custou mais de 100 mil vidas e que já viu o presidente sírio fuzilar, bombardear, disparar artilharia e, por fim, usar gás venenoso contra seu povo.

Nenhuma "lei internacional" faz da Síria feudo perpétuo dos Assad ou permite que ele (a exemplo do pai) cometa atrocidades em larga escala.

Se solicitado a escolher a palavra mais desprovida de significado na Rússia de Putin, eu optaria por "democracia". Ela se tornou um termo de insulto ao Ocidente e serve para designar a propensão ocidental de interferir em assuntos que não lhe dizem respeito, assim como a incômoda insistência quanto à liberdade de expressão, à liberdade de imprensa, à liberdade de reunião, aos direitos humanos (incluindo os dos homossexuais) e, sim, ao Estado de Direito.

"A Síria não está testemunhando uma batalha pela democracia, mas um conflito armado entre governo e oposição em um país de múltiplas religiões", escreveu Putin. "Há poucos campeões da democracia na Síria, mas existe número mais que suficiente de combatentes da Al Qaeda e de extremistas de todas as estirpes combatendo o governo."

A Primavera Árabe, que resultou no levante da Síria, girava em torno de muitas coisas, mas tinha em seu cerne algo central à democracia: o direito de se pronunciar sem medo. Ela envolvia derrubar déspotas, para permitir que isso acontecesse.

No Egito, na Líbia e na Tunísia, manifestantes me disseram que aquela era a primeira vez que se sentiam capazes de fazer diferença, de exercer seu poder como agentes. Assim, a batalha na Síria começou como uma batalha para derrubar Assad, o tirano, e instalar alguma forma de governo representativo.

A guerra está ingressando em seu terceiro ano, e o Ocidente continua incerto sobre como responder. Com isso, combatentes islâmicos radicais acorreram ao país (da mesma forma que forças treinadas pelo Irã, para ajudar o governo).

Os extremistas amam o vácuo. Mas a luta pela queda de Assad e por uma sociedade mais livre é o tema subjacente a toda a desordem. Isso não deveria ser esquecido.

A democracia não é panaceia. É fugaz, como os distúrbios no Egito demonstram. Só a Tunísia, entre os países cujos regimes caíram durante a Primavera Árabe, parece estar a caminho de alguma estabilidade democrática que abarque tanto a opinião laica quanto a islâmica.

Mas sem ela não há consentimento dos governados e, como observou Thomas Rainsborough em 1647, "cada homem que tenha de viver sob um governo precisa primeiro consentir livremente em se colocar sob esse governo".

Essa ideia vem ganhando força mesmo que figuras como Putin a desconsiderem e a China opte por ignorá-la. A Índia, maior sociedade democrática do planeta, serve para negar a ideia de que um país precisa atingir determinado nível de riqueza ou educação para que uma democracia possa funcionar.

O Paquistão acaba de concluir sua primeira transição pacífica de um governo democraticamente eleito para seu sucessor. A Indonésia está se tornando mais uma democracia asiática grande e estável.

Ao mesmo tempo, estamos testemunhando uma crise da democracia. Na Europa existe grande ira contra os políticos eleitos, vistos como corruptos ou distantes dos eleitores. Movimentos extremistas e antidemocráticos estão em ascensão.

Isso é palpável em Atenas, o berço da democracia, que se tornou um lugar no qual pessoas que perderam seus empregos estão convencidas de que o país é controlado por forças externas -a Alemanha, o Banco Central Europeu (BCE) ou Bruxelas.

As últimas semanas não vêm sendo boas para a democracia. Putin e Assad são os grandes vitoriosos com a desordenada retirada do presidente Obama com relação à "linha vermelha" que havia declarado para o uso de armas químicas.

Quando a democracia perde terreno, a linguagem e o significado a acompanham em seu recuo. Assad, ao que parece, agora merece nossa confiança quanto à entrega daquelas armas químicas cuja existência ele nem mesmo reconhecia algumas semanas atrás.

E o ditador fará isso sob tutela da Rússia, que ainda acredita que a oposição foi responsável pelo devastador ataque químico de 21 de agosto.

Uma teia de palavras permitiu que Assad escapasse impune. Veremos se elas têm significado, mas duvido muito. Este é um momento de retirada por esgotamento para o Ocidente.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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