Folha de S. Paulo


É difícil para Obama resistir ao uso da força na Síria, diz crítico a ataque

Uma das principais vozes contra as ameaças de intervenção dos EUA na Síria, o professor de relações internacionais de Harvard Stephen Walt diz que uma ação militar não vai melhorar a situação humanitária no país e nem servir aos interesses americanos na região.

Para ele, porém, até mesmo um presidente de perfil menos belicoso como Obama tem dificuldades para resistir ao pensamento hegemônico em Washington de que os EUA devem recorrer à força para resolver os problemas do mundo.

Walt ainda classifica como "uma besteira" o argumento de que os americanos precisam retaliar o uso de armas químicas pelo regime de Bashar al-Assad para manter sua credibilidade internacional.

E diz que a proposta russa para que o ditador entregue seu arsenal químico pode ser uma solução para essa questão, mas não resolverá a guerra civil entre as tropas leais a Assad e os rebeldes que desde 2011 tentam tirá-lo do poder.

Leia abaixo trechos da entrevista concedida à Folha na última sexta-feira, no iFHC (Instituto Fernando Henrique Cardoso), em São Paulo, onde participou de uma mesa redonda.

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Por que o senhor se opõe a uma intervenção militar americana na Síria?

Porque isso não vai fazer avançar os interesses estratégicos dos EUA e provavelmente não vai melhorar a situação humanitária na Síria. O colapso do governo Assad poderia facilmente levar grupos piores ao poder, e uma intervenção americana poderia também prolongar a guerra civil em curso.

Por essas duas razões, deveríamos usar a diplomacia para tentar acabar com a guerra civil.

E quanto ao argumento de que os EUA e a comunidade internacional precisam manter sua credibilidade, precisam provar de que realmente falavam sério quando disseram que não aceitariam o uso de armas químicas no conflito?

Em primeiro lugar, eu acredito que a atenção dada às armas químicas tem sido exagerada. Mais de cem mil pessoas morreram na Síria pelo uso de armas ordinárias. Armas químicas são ruins, mas explosivos também são.

O segundo ponto é que as pessoas sempre falam em credibilidade quando não têm outras boas razões para que os EUA se envolvam em um conflito. Mas os EUA lutaram cinco guerras desde 1990 e estão hoje presentes militarmente no Afeganistão, no Paquistão, no Iêmen e em vários outros países.

A credibilidade americana não está em jogo aqui. Se decidirmos não usar força militar na Síria porque não é de nosso interesse, isso não significa que não vamos usá-la quando for de nosso interesse.

O senhor acredita que a proposta russa de que a Síria entregue suas armas químicas pode realmente evitar uma intervenção?

Sim, mas não sei se esse esforço vai ser bem sucedido. Em tese, ele poderia resolver a preocupação imediata com as armas químicas, mas há muitos detalhes que precisam ser trabalhados. Mesmo que funcione, porém, ela não soluciona o problema maior da guerra civil, que vai continuar.

Há algo que os EUA e outros países possam e devam fazer para tentar por um fim à guerra civil e acabar com o massacre de civis?

O que os EUA podem fazer é tentar trabalhar com os outros poderes que têm interesses lá --a União Europeia, a Rússia, o Irã e a Arábia Saudita-- para tentar persuadir os diferentes grupos que estão combatendo na Síria a acabar com a violência e começar a conversar sobre uma solução política.

É possível que a Síria termine tendo que ser dividida em diferentes setores, com o governo atual mantendo o controle sobre algumas áreas, e a oposição, sobre outras. Ou que tenham que chegar a um acordo para compartilhar o poder de alguma maneira.

Parece-me que essa é a melhor forma de ação nesse caso. E é melhor do que continuar a enviar mais e mais armas à Síria, o que eleva o risco de que, se o governo cair, possa haver uma luta pelo poder entre grupos de oposição que já estão muito bem armados e nem sempre concordam entre si.

Esse é um ponto de preocupação para muitos países: muitos dos rebeldes são extremistas islâmicos, alguns até com conexões com a Al Qaeda...

A revolta na Síria começou com um protesto político pacífico pedindo por reformas razoavelmente modestas. Ele apenas se tornou violento depois que o governo tentou reprimir esse movimento.

E é comum em guerras civis que, com o tempo, os combatentes se tornem cada vez mais extremistas. As pessoas dispostas a usar a violência acabam se tornando mais e mais influentes.

E que tipo de mensagem a decisão de não intervir manda aos inimigos dos EUA, como o Irã? Eles poderiam se sentir encorajados a seguir em frente com seu programa nuclear?

Acho que não, porque, como disse antes, a decisão de não intervir na Síria não significa que os EUA não recorreriam à força contra um país como o Irã, se isso fosse considerado necessário e inteligente.

Mas, na minha visão, usar a força contra o Irã também seria uma bobagem. Não seria suficiente para destruir as instalações nucleares iranianas de forma permanente e apenas daria ao país mais razões para querer ter armas nucleares no futuro.

Por isso, a coisa certa a fazer é tentar chegar a um acordo que permita o país enriquecer material nuclear, mas não construir armas nucleares.

O senhor acha que há uma nova oportunidade para essa negociação com a eleição do [reformista Hasan] Rowhani para presidente do Irã?

Com certeza. Será um grande erro se os EUA e outros países não negociarem sincera e energeticamente com o novo governo iraniano. O novo presidente já mandou todas as mensagens certas.

Se a proposta russa para a Síria for bem sucedida, isso afetará o balanço global de poder? Putin já está faturando em cima da proposta...

A Síria é um país pequeno e não muito poderoso. O que acontece lá não afeta o balanço global de poder de forma alguma. O que vai afetar o balanço de poder no mundo é basicamente a saúde econômica de diferentes países, como os próprios EUA, a China, a União Europeia, o Brasil, a Índia...

Obama foi eleito com um discurso antiguerra e tem como secretário de Estado John Kerry, que no passado fez campanha contra a guerra do Vietnã. O senhor ficou surpreso ao ver a administração atual defender uma intervenção militar no Oriente Médio mesmo sem apoio da ONU?

Isso mostra que a tendência de intervir e de usar o poder militar como ferramenta primária está enraizada de forma muito poderosa no sistema de política externa dos EUA. Mesmo um presidente como Obama, que claramente entende os limites do que se pode atingir militarmente, tem problemas para resistir à tentação de tentar resolver os problemas com o uso da força.

É por isso que ele ampliou as tropas no Afeganistão em 2009, aumentou o uso de 'drones' em vários países e expandiu os serviços de vigilância que agora causam problemas com muitos países, como a Alemanha e o Brasil.

Isso mostra que apenas mudar o presidente não muda a forma como a maior parte das pessoas que trabalham com política externa no país pensa sobre o papel dos EUA no mundo. Até isso mudar, continuaremos a incorrer nos mesmos erros.

O que é interessante no caso sírio é que o povo americano não comprou esse argumento. Houve muito pouco apoio público para uma ação militar. E é por isso que o Congresso estava tão cético também.

De onde vem essa pressão para intervir?

A maioria das pessoas que trabalham com política externa nos EUA sente que é direito e responsabilidade dos EUA guiar o mundo. Se você é ambicioso e quer subir em Washington, é mais seguro concordar com essa visão básica.

E há também muitas pessoas que veem o sofrimento na Síria e querem consertar isso. Muitas vezes não pensam que, ao tentar consertar, podem tornar as coisas ainda piores.

E a que o senhor atribui a decisão de Obama de pedir apoio ao Congresso para a intervenção?

Acho que ele entendeu que não havia muito apoio público à ideia e quis ver se poderia gerar apoio político ao recorrer ao Congresso. O interessante é que, se ele tivesse sentido que um ataque aéreo era absolutamente necessário, o mais simples teria sido ordenar ataques restritos e depois dizer: "pronto, está feito".

Isso provavelmente não teria gerado muita oposição política. É possível, porém, que Obama tenha a intenção de restabelecer o princípio de que os EUA não devem usar a força só porque o presidente acha que é uma boa ideia.

Não temos um rei, não temos um ditador; temos uma democracia. Não deveríamos estar numa posição em que o presidente pode lançar uma guerra só porque acha que é uma boa ideia.


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