Folha de S. Paulo


Análise: Proposta russa sobre Síria dá motivos para incredulidade e temor

Uma nuvem de improvisação obscurece a política internacional com relação à Síria. A proposta russa de auditar o arsenal químico do regime de Assad, por meio de inspeções internacionais que resultariam em sua destruição, pouco fez para dispersar a neblina.

Para além da tragédia síria em torno da qual essa dança diplomática rodopia, um déspota impiedoso e seu patrono autoritário estão derrotando o presidente dos EUA no campo da opinião pública.

Os EUA e seus aliados estão tentando improvisar, mas é necessário um esforço muito deliberado de suspensão da descrença para imaginar que a Rússia tenha apresentado um caminho real para o progresso na Síria.

Existem quatro motivos substantivos para incredulidade e um para desespero.

Primeiro: por que Bashar al-Assad, ditador que mata seu próprio povo em ataques com gás venenoso, entregaria voluntariamente um arsenal que ele no geral vem mantendo em reserva?

O arrazoado sírio para justificar a posse de armas químicas que o regime não admite possuir é combater o estoque de ogivas nucleares que Israel não admite possuir.

Enquanto a Síria jamais assinou a CWC (Convenção de Armas Químicas), à qual agora declara a intenção de aderir, Israel assinou o tratado, mas jamais o ratificou. E os israelenses já bombardearam a Síria três vezes neste ano.

Segundo, a única maneira pela qual a Síria poderia ser confiavelmente forçada a abrir mão de suas armas químicas seria por uma resolução compulsória do Conselho de Segurança da ONU.

A França vinha buscando uma resolução desse tipo, tomando por base o capítulo 7 da Carta das Nações Unidas, que forçaria a Síria a enquadrar seu arsenal químico ao disposto pela CWC dentro de um prazo razoável --e autorizaria o uso de força caso isso não acontecesse.

O presidente russo, Vladimir Putin, rejeita qualquer ameaça de força ou implicação de que os Assad mataram mais de mil pessoas no ataque do mês passado.

Terceiro: a logística da desativação do arsenal químico sírio, em meio a uma guerra civil com centenas de frentes de batalha, é impossível sem um cessar-fogo. Mesmo que um cessar-fogo aconteça, já há armas químicas em posição de uso. Um regime que as utilizou declararia sua posse?

Quarto, se houver acordo e um cessar-fogo para implementá-lo, a Síria teria chegado a um ponto no qual uma solução negociada para a guerra seria possível. Isso não acontecerá enquanto os Assad se mantiverem no poder em Damasco --o que nos conduz de volta ao motivo básico para que tenham usado o gás: liquidar uma ameaça.

O quinto motivo --o do desespero-- é que nada disso resolve a ameaça mortal que os Assad representam para o povo sírio e o dos países vizinhos. Se por algum processo de alquimia geopolítica a iniciativa vier a prosperar, será que isso significa que os Assad têm licença para matar mais 100 mil sírios, desde que não usem gás venenoso para tanto?

Os Assad aprenderam a exercer o poder em uma escola de muita crueldade, mas a iniciativa os trata quase como se fossem meninos levados apanhados em alguma travessura.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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