Folha de S. Paulo


Carnificina em ataque com gás sírio pode ser ponto de inflexão

Milhares de sírios doentes e moribundos lotaram os hospitais nos subúrbios de Damasco antes do alvorecer, horas depois da explosão dos primeiros foguetes, com os corpos convulsionados e as bocas espumando. A visão deles estava nublada, e muitos não conseguiam respirar.

Os médicos sobrecarregados trabalhavam freneticamente, aplicando aos pacientes injeções do único antídoto disponível, atropina, na esperança de debelar o ataque ao sistema nervoso encetado pelos supostos agentes químicos. Mas em poucas horas, devido ao grande afluxo de pacientes, a atropina se esgotou.

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Para evitar contaminação, os médicos ordenavam que os recém-chegados fossem despidos e mantivessem apenas as roupas de baixo; eles depois eram enxaguados com mangueiras antes de poderem entrar no hospital.

Novos pacientes continuavam a chegar. Um médico da cidade de Kafr Batna comparou a cena a um filme de terror, com carros chegando ao local trazendo famílias inteiras --pais, mães e filhos--, todos mortos.

Os médicos não demoraram a ter de enfrentar novo problema: onde colocar os mortos. Alguns foram cobertos por blocos de gelo para rebater o calor do verão; outros foram envoltos em lençóis brancos e enfileirados de modo a que familiares pudessem identificar as vítimas.

As autoridades em Washington só acordariam e seriam informadas sobre as dimensões do massacre horas mais tarde, na quarta-feira. O presidente Barack Obama, que havia acabado de retornar de uma semana de férias e planejava um dia tranquilo na Casa Branca antes de partir para uma viagem de ônibus de dois dias à Pensilvânia e Nova York, foi informado do ataque naquela manhã, no Gabinete Oval, durante seu briefing regular de inteligência.

A Casa Branca fez uma declaração pública cautelosa sobre os ataques, lida por um assistente do porta-voz do presidente, antes do meio-dia, mas nos bastidores Obama e sua equipe de segurança nacional estavam correndo para lidar com a urgência e a enormidade do evento: o maior homicídio em massa da guerra civil síria, e possivelmente o uso mais mortífero de armas químicas desde que as forças de Saddam Hussein mataram milhares de curdos usando o gás sarin, que ataca o sistema nervoso, nos dias finais da guerra entre Irã e Iraque, em 1988.

Entrevistas com mais de duas dúzias de ativistas, rebeldes e médicos em áreas próximas aos locais dos ataques, bem como o exame de mais de 100 vídeos e fotos mostrando as consequências, sustentam essa afirmação.

Não só a agressão atraiu condenação internacional generalizada ao governo do presidente sírio Bashar Assad, que os Estados Unidos e seus aliados estão convencidos de ter realizado o ataque, como o incidente está se tornando um ponto de inflexão em uma guerra que já se arrasta há mais de dois anos e causou mais de 100 mil vítimas até o momento.

Um presidente norte-americano que está tentando desesperadamente manter o país afastado de uma nova guerra no Oriente Médio agora está ponderando um ataque militar à Síria --sob pressão de sua própria declaração de que um ataque em larga escala com armas químicas representaria uma "linha vermelha" que forçaria Washington a reagir.

O governo de Assad vem negando repetidamente o uso de armas químicas, e atribui aos rebeldes a culpa pelos ataques reportados. Mas os países ocidentais dizem contar com provas sólidas de que o governo sírio usou armas desse tipo em pelo menos duas ocasiões antes da quarta-feira passada. E o suprimento de atropina disponível nas áreas sob controle dos rebeldes em torno da capital síria é indicador do uso repetido, embora limitado, de agentes químicos como armas táticas, em uma guerra que se tornou um embate de atrito travado rua a rua, disseram rebeldes e médicos.

Se os Estados Unidos se envolverem, provavelmente será por conta da escala do que aconteceu na madrugada da quarta-feira em cidades em torno de Damasco que o governo está determinado a reconquistar. Os ataques causaram tamanho caos entre os moradores que o número de mortes ainda é desconhecido, e muita gente continua incerta quanto ao paradeiro de seus parentes.

"São meus primos", diz uma pessoa em um vídeo gravado na cidade de Hamouriyeh, apontando para o chão onde os corpos de um homem e duas crianças jazem.

"Continuo a procurar pelo resto da família", diz a pessoa. "Mais cinco ou seis pessoas".

Quando anoiteceu, na Síria, os corpos não recuperados por parentes foram sepultados em valas comuns. Antes do sepultamento, ativistas colocaram números nas testas das vítimas e as fotografaram --caso as famílias as venham a procurar mais tarde.

MUITA GENTE ENCURRALADA EM CASA

O ataque começou pouco depois das 2h.

As pessoas que ouviram as explosões e viveram para contar a história dizem que o som as surpreendeu, comparando-o a "um tanque de água estourando" ou à "abertura de uma garrafa de Pepsi".

Depois veio o cheiro, que queimava olhos e gargantas, um odor parecido com o de cebolas ou cloro.

Os efeitos foram imediatos e devastadores.

No momento dos ataques, poucas horas antes das orações matutinas, maioria das pessoas estava dormindo em casa. A substância liberada pela barragem de foguetes que atingiu os subúrbios em dois lados de Damasco matou muita gente antes que as vítimas pudessem sair da cama.

O mais mortífero dos ataques foi o realizado contra o coração de uma região conhecida como Ghouta Leste, uma área ao nordeste de Damasco cujas pequenas cidades cresceram nas últimas décadas pelo influxo de muçulmanos sunitas, em sua maioria pobres e egressos do campo --a base da rebelião contra Assad.

As cidades da área estão estavam durante quase todo o ano sob o controle de diversas facções da rebelião. Ao contrário do que acontece no norte e leste da Síria, grupos extremistas como a Frente Nusra não têm posição dominante. O isolamento econômico da área a torna um terreno fértil para a rebelião, e ela se provou uma ameaça permanente ao controle de Assad sobre a região da capital.

Os ataques parecem se enquadrar a um padrão de escalada continuada por parte de forças do governo ao longo da guerra, com grandes ataques a áreas residenciais que não parecem servir a propósitos táticos imediatos.

Ataques como esses têm por objetivo não matar combatentes rebeldes, mas sim aterrorizar os partidários civis dos rebeldes em áreas estratégicas que as forças de Assad não foram capazes de subjugar.

"Eles sabem que os filhos das pessoas estão nas linhas de frente, e que se você atingir suas famílias eles voltarão para casa a fim de averiguar se está tudo bem, o que facilita uma invasão", disse um ativista de Zamalka que só informou seu prenome, Firas. Mas ele disse que a tática não funcionou e que em lugar disso havia estimulado os combatentes rebeldes a defender com mais entusiasmo as suas posições.

Alguns analistas militares dizem que o aparente ataque químico parece ter sido parte de uma operação maior das forças de Assad, que também usaram tanques, foguetes com ogivas convencionais e ataques aéreos para capturar áreas sob controle rebelde em torno da capital síria.

"Parece que eles estão tentando quebrar a resistência na área de Damasco, o que eles já vêm buscando sem sucesso há algum tempo", disse Jeffrey White, ex-analista de Oriente Médio na Agência de Inteligência da Defesa e agora pesquisador no Instituto Washington de Política do Oriente Médio.

Firas, o ativista, disse que estava voltando de carro para casa com alguns amigos quando foi informado sobre o ataque em seu intercomunicador. Disse que ficou apavorado, porque ninguém sabia onde os ataques haviam ocorrido e até onde o suposto gás se havia espalhado. Eles cobriram o rosto com panos umedecidos e saíram rapidamente da cidade rujo a um hospital de campo mais a leste.

HOSPITAIS SOBRECARREGADOS

Não importa quais tenham sido os agentes químicos usados, a carnificina causada pelo ataque de quarta-feira sobrecarregou os hospitais de campo nas cercanias de Damasco. Havia cadáveres espalhados pelos pisos azulejados, estendidos pelos corredores e enfileirados nas calçadas e ruas.

Um médico da cidade de Kafr Batna disse ter corrido à sua clínica logo que soube do ataque, e que encontrou 100 pacientes à espera.

"Tínhamos homens, mulheres e crianças, todos sufocados e com problemas para respirar", disse o médico, Sakhr. "Alguns deles espumavam pela boca e narinas, e muitos estavam inconscientes".

A organização assistencial médica Médicos sem Fronteiras afirmou no sábado que as três clínicas que ela sustenta na área registraram 355 mortes. O Observatório Sírio dos Direitos Humanos, que acompanha o conflito do Reino Unido por meio de uma rede de contatos em território sírio, anunciou ter confirmado a morte de 322 pessoas, entre as quais 54 crianças e 82 mulheres.

Alguns ativistas compilaram listas de nomes de vítimas e dizem que mais de mil pessoas foram mortas no ataque da madrugada de quarta-feira.

Pelo final do dia, disse Sakhr, 16 dos 160 corpos recolhidos por sua clínica não haviam sido identificados. Voluntários os levaram a um cemitério próximo, fotografaram os rostos de cada um deles e os sepultaram em uma vala comum.

Para os sobreviventes, as consequências mórbidas do ataque eram outras. Quase uma semana depois da ação, Sakhr diz que os moradores locais que não fugiram da área não param de perguntar a ele onde dormir para escapar a futuros ataques.

Outros continuam em busca de parentes perdidos, entre os quais crianças que se abrigaram com desconhecidos depois do desaparecimento de seus pais.

"Alguns encontram seus parentes e agradecem a Deus quando podem se sentar ao lado deles", disse Sakhr.

"Outros não os encontram e precisam continuar procurando", acrescentou.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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