Folha de S. Paulo


Ensaio: Bloomberg deixa Prefeitura de Nova York como um marco

Ávido por enfrentar o impossível -ou pelo menos o aparentemente impossível- Michael R. Bloomberg foi prefeito da cidade de Nova York em uma era de mudança radical e de renascimento, em grande parte promovida por sua administração.

Surpreendente, visionário, obstinado e brilhante, Bloomberg tinha complexidades que podiam ser muito hipócritas ou deliciosamente humanas. Ele pregava as virtudes da restrição de sódio na dieta, mas colocava montes de sal em fatias de pizza.

Ele levou o país -e, na verdade, o mundo- a adotar medidas duras para reduzir as emissões de carbono. Enquanto isso, voava para toda parte em jatos particulares, a forma de transporte menos eficiente em emissão de carbono na Terra, fosse para passar fins de semana em sua casa em Bermuda ou para dar uma palestra em uma conferência sobre mudança climática em Copenhague.

Ele não era inclinado à oratória elevada, por isso, em suas raras incursões, a eloquência era memorável, como em 2010, quando defendeu o direito de um grupo muçulmano a abrir uma mesquita a poucos quarteirões do local dos atentados ao World Trade Center, citando os princípios fundadores da nação. Na ilha dos Governadores, com a Estátua da Liberdade visível sobre seu ombro, Bloomberg disse: "Nós seríamos infiéis à melhor parte de nós mesmos e a quem somos como nova-iorquinos e americanos se disséssemos não a uma mesquita em Manhattan".

John Marshall Mantel/The New York Times
As iniciativas de Michael Bloomberg (o segundo, da direita para a esquerda) lhe deram o apelido de
As iniciativas de Michael Bloomberg (o segundo, da direita para a esquerda) lhe deram o apelido de "Prefeito Mamãe"

Em meados de agosto, o mesmo prefeito criticou um juiz por decidir que, ao revistar os bolsos de milhões de jovens negros e latinos que não tinham feito nada de errado, a polícia e a cidade violaram seus direitos constitucionais. O momento não teve sequer uma sombra do dom que tornara sua voz tão poderosa na ilha dos Governadores.

Seria inútil tentar comparar esses dois Bloombergs.

Mas, ao iniciar seus últimos meses na prefeitura, o arco completo de sua era torna-se visível. Os prefeitos muitas vezes são espectadores, obrigados a jogar com as cartas que lhes são dadas. Mas, como nenhum outro prefeito da Nova York moderna, Bloomberg foi uma figura transformadora, alguém que moldou sua época.

Eleito para comandar uma cidade que era o cenário ferido e enlutado de uma atrocidade, ele partirá como prefeito de uma cidade onde os artistas Christo e sua mulher, Jeanne-Claude, instalaram "Os Portões", decorando um parque com milhares de tecidos cor de laranja pela simples alegria do ato, onde engenheiros descobriram como transformar o gás do esgoto em eletricidade e onde as pessoas estão mais imunes ao crime violento do que em qualquer outro momento da história moderna.

Talvez a mudança de mais longo alcance seja invisível: o ar mais limpo em espaços fechados. Desde 30 de março de 2003, todos os restaurantes e bares da cidade estão livres da fumaça de tabaco.

Pouco depois de assumir o cargo, Bloomberg se reuniu com seu primeiro secretário de Saúde, o doutor Thomas R. Frieden, que o pressionou a decretar uma proibição total ao fumo em lugares onde as pessoas trabalham -sem exceções. Essa proibição salvaria vidas?, Bloomberg quis saber. Sim, disse o doutor Frieden. Então vá em frente, disse o prefeito.

Os comentaristas caçoaram do "Prefeito Mamãe" e do "Estado Babá". Então o índice de adultos fumantes caiu em um terço e, entre os jovens, pela metade.

A proibição ao cigarro já tinha sido aprovada na Califórnia e em algumas cidades dos Estados Unidos, mas não era muito notada além das fronteiras americanas. Depois que Nova York deu o passo, a cruzada atravessou os oceanos.

Desde que a cidade de Nova York aprovou sua lei, 500 outras cidades e 35 Estados dos EUA aprovaram leis nesse sentido. Em março de 2004, uma proibição nacional ao fumo em locais públicos foi aprovada pela República da Irlanda, que se tornou o primeiro país da Europa a dar esse passo. No final de 2012, 48 países tinham seguido Nova York na proibição ao fumo, oferecendo alguma proteção para 1,2 bilhão de pessoas. Isso vem a ser cerca de um em cada sete de todos os seres humanos que existem hoje na Terra: é de tirar o fôlego e de dar fôlego.

Não apenas o ar mudou. A área de parques da cidade cresceu cerca de 320 hectares (3,2 milhões de m2), e 750 mil árvores foram plantadas, aproximando-se da meta de um milhão. Quase 460 quilômetros de ciclovias foram construídos e trechos da avenida Broadway perto de Times Square foram reservados para pedestres.

A margem do rio East nos bairros de Queens e Brooklyn, reurbanizada para receber os Jogos Olímpicos que não ocorreram, cresceu para absorver uma população que aumenta aos milhares todos os meses.

A Universidade Cornell, com o Instituto de Tecnologia Technion-Israel, está construindo um novo campus de ciências aplicadas na ilha Roosevelt. O projeto foi incentivado pela administração Bloomberg e se tornou possível quando o filantropo Charles F. Feeney doou US$ 350 milhões.

A cidade reduziu o número de jovens detidos para julgamento em tribunais juvenis em até 50% e o total de pessoas que mandou para a cadeia. O crime diminuiu.

Como um de seus primeiros atos, Bloomberg conquistou o controle das escolas, dizendo que isso geraria responsabilidade. A quantia de dinheiro aplicado nas escolas dobrou desde 2001.

Daniel Marenco/Folhapress
Os prefeitos do Rio, Eduardo Paes, e de Nova York, Michael Bloomberg, fazem visita à favela Bailonia
Os prefeitos do Rio, Eduardo Paes, e de Nova York, Michael Bloomberg, fazem visita à favela Bailonia

Mais estudantes se formaram no secundário em quatro anos, embora esse sucesso não estivesse intimamente ligado ao valor aplicado em determinada escola. Os recursos adicionais tampouco foram capazes de eliminar a diferença das notas em provas entre os estudantes brancos e asiático-americanos, de alto desempenho, e seus colegas negros e hispânicos, com notas mais baixas.

Mas o controle do sistema educacional pela prefeitura deu à administração central o poder de fechar escolas, requisitar espaço para programas subsidiados e definir regras rígidas para alocar alunos às escolas. Muitos pais começaram a olhar novamente com carinho para o antes desprezado sistema de conselho comunitário.

Diferentemente da maioria das autoridades eleitas, Bloomberg tinha muito bálsamo para espalhar quando o orçamento da cidade secou. Em nove anos, ele doou cerca de US$ 200 milhões por meio da Carnegie Corporation para 600 grupos artísticos e culturais, muitos dos quais tinham sido cortados do orçamento municipal.

"As verbas causaram um bem indiscutível para o tecido social e cultural da cidade", escreveu o repórter investigativo Tom Robbins no "New York Post" em junho. "Mas a vantagem política foi igualmente inevitável."

As doações duplicaram em 2005, um ano eleitoral, e triplicaram em 2008, quando Bloomberg tentou disputar um terceiro mandato, revertendo o limite de reeleições que havia sido votado em lei por um referendo popular. Ele gastou mais de US$ 110 milhões em sua campanha à reeleição e venceu por pouco.

Nenhum prefeito conclui todas as questões que precisam ser abordadas. Quando Bloomberg brincava com a candidatura a presidente, ele chutou dívidas para a frente -concessões sobre aposentadorias, benefícios de saúde dos sindicatos da cidade e US$ 6 bilhões em capital para moradia pública.

A durabilidade do espírito experimental que Bloomberg incentivou permanece incerta, assim como os US$ 383 milhões em doações privadas que ele levantou para diversos projetos-pilotos: conter a violência doméstica, evitar que os jovens negros e latinos ficassem atrasados na escola, fabricar telhados verdes, acrescentar saladas nas refeições escolares.

O canto da sereia dos grandes números levou a cidade a multiplicar o número de pessoas interpeladas e revistadas pela polícia.

Mas a Constituição protege os direitos dos indivíduos e não reconhece as leis dos grandes números. Ela exige que quanto mais invasiva for uma ação das autoridades contra uma pessoa, maior deve ser a causa.

Mais de um ano atrás, Bloomberg disse que haveria mudanças na abordagem policial. O número de checagens diminuiu acentuadamente. Um Bloomberg mais ágil teria evitado uma briga desnecessária por um programa que já estava sendo reformado.

Questionado recentemente sobre a ordem judicial para que a polícia use câmeras corporais para documentar o que acontece nas ruas, Bloomberg pareceu especialmente irritado. É um "pesadelo", disse. "Uma solução que não é uma solução."

Michael Bloomberg havia se tornado o tipo de especialista que 12 anos atrás ele não contrataria para seu governo: alguém que, como ele disse na época, sabia "o que não pode ser feito".

Ele é esperto e muitas vezes teve sorte. Quando essa feliz combinação lhe faltou, sua vasta fortuna pessoal o ajudou a remendar as coisas, praticar boas ações e comprar aliados.

Talvez o mais importante é que Michael Bloomberg teve talento para evitar lutas políticas desnecessárias e soube experimentar e falhar. Essa combinação de eficiência emocional e experimentação destemida modificou não apenas sua cidade, mas o mundo.


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