Folha de S. Paulo


Egito critica imprensa estrangeira por cobertura no país

Em meio a reações internacionais de ultraje diante da repressão sangrenta, o novo governo nomeado pelo general Abdel-Fattah el-Sissi está pressionando forte os únicos veículos de imprensa restantes no Egito que ainda estão cobrindo críticas à violência: a imprensa estrangeira.

As Forças Armadas já tinham fechado todas as redes de TV egípcias que apoiavam o presidente Mohamed Morsi, na noite em que ele foi deposto pelo general. Agora, nos últimos quatro dias, as novas autoridades invadiram e fecharam as instalações da emissora pan-árabe Al Jazeera, tomaram medidas para revogar sua licença de atuação no Egito e, no domingo, prenderam seu correspondente Abdullah El-Shamy por acusações de incitar ao assassinato e à violência sectária. Sediada no Qatar, a Al Jazeera era a única emissora grande de língua árabe vista como sendo favorável à Irmandade Muçulmana.

Enquanto isso, altos funcionários do governo repreenderam correspondentes ocidentais publicamente em duas coletivas de imprensa e em um comunicado público por não retratarem a repressão nos termos do governo: como uma guerra contra terroristas violentos.

No domingo até mesmo El Sissi uniu-se ao coro, criticando a imprensa estrangeira por não apreciar devidamente seu mandato de combate ao terrorismo. As críticas foram ecoadas incessantemente na imprensa estatal e privada, e, em aparente resposta, partidários de El Sissi atacaram ou detiveram pelo menos meia dúzia de jornalistas estrangeiros, a grande maioria no mesmo dia em que um assessor do presidente lançou a primeira diatribe contra a cobertura noticiosa feita pela imprensa ocidental.

"Poderíamos ser perdoados por dizer que há uma campanha coordenada contra jornalistas estrangeiros", falou no domingo Matt Bradley, repórter do "Wall Street Journal", em entrevista à rede Al Jazeera em língua inglesa. Ele contou que foi colocado num veículo blindado de transporte de tropas por soldados que o resgataram de uma multidão que o atacou, rasgou suas roupas e tomou seu bloco de anotações.

Chegando ao final de uma semana em que as forças de segurança mataram mais de mil partidários de Morsi nas ruas, a investida para controlar o modo como a mídia retrata a violência é o sinal mais recente da virada autoritária descrita pelo governo, que seus funcionários justificam como sendo medidas emergenciais para salvar o Egito de uma campanha coordenada de violência travada pelos islâmicos da Irmandade Muçulmana.

Acadêmicos e ativistas dos direitos humanos dizem enxergar sinais de coordenação ampla entre a mídia estatal e privada do Egito para transmitir as mesmas mensagens. Após o primeiro incidente de disparos contra uma multidão após a tomada do poder pelos militares ter matado mais de 60 partidários de Morsi numa ocupação, por exemplo, os talk shows da televisão estatal privada pareciam sugerir que os islâmicos podem ter provocado a violência propositalmente com o intuito de sujar a imagem dos militares.

Mais tarde, todos parecem ter descoberto que até mesmo o premiê britânico, David Cameron, argumentou em favor de serem limitados os direitos humanos em nome da proteção da segurança nacional. "A coordenação é muito evidente", disse Heba Morayef, pesquisadora no Egito da organização Human Rights Watch. "Deixando de lado o que é verdade ou não, é interessante o fato de que ouvimos a mesma coisa de todos."

Ativistas conhecidos dos direitos humanos cujas críticas ao governo anterior os levaram a ser presença constante nos talk shows egípcios diários nos últimos dois anos dizem que seus convites sumiram quando eles passaram a criticar a violência policial desproporcional desde a tomada do governo por El Sissi, em 3 de julho.

Os acadêmicos dizem que a repentina unanimidade pró-governo da mídia noticiosa egípcia, vinda após a explosão ruidosa de liberdade de imprensa que se seguiu à deposição do presidente Hosni Mubarak, dois anos atrás, representa um retorno não apenas à era Mubarak, mas a um tempo muito anterior --à época anterior à TV via satélite, quando o governo controlava toda a imprensa egípcia. Alguns dizem que o coro de críticas aos islâmicos, tachados de "terroristas" --algo pouco ouvido aqui até julho-- lembrou o início dos anos 1950, quando o coronel Gamal Abdel Nasser consolidou seu poder, reprimindo a Irmandade Muçulmana.

O ponto central da queixa do governo contra a cobertura feita pela mídia ocidental é o que ele vê como sendo a atenção excessiva dada às centenas de partidários de Morsi mortos na violência policial e a atenção insuficiente dada aos atos de violência cometidos por seguidores de Morsi. Partidários irados de Morsi em todo o país vêm atacando e incendiando igrejas desde a deposição dele; no domingo, o governo distribuiu a contagem feita por um jornal cristão de 26 igrejas atacadas, embora o número não tenha sido confirmado de modo independente.

Na região relativamente sem lei do Sinai, refúgio de militantes islâmicos, os ataques letais a soldados e policiais vêm aumentando desde a derrubada de Morsi. E, desde a ocupação da quarta-feira passada, vários partidários de Morsi foram vistos no Cairo portando ou disparando armas de fogo em choques com a polícia ou os partidários civis dela, incluindo durante o ataque na ocupação.

Numa entrevista coletiva à imprensa dada pelo ministro interino do Exterior, Nabil Fahmy, no domingo, o governo exibiu imagens de vídeo e circulou algumas fotos de islâmicos em cenas diferentes brandindo armas nos choques e de um homem que embrulhou uma arma em papel para escondê-la quando correu no meio da batalha na dispersão da ocupação. Alguns dos civis que combatiam também estavam armados.

Quando a polícia atacou os manifestantes com gás lacrimogêneo, chumbinho e munições pontiagudas, muitos partidários de Morsi tentaram reagir atirando pedras e coquetéis Molotov. O governo já disse que mais de 40 agentes de segurança foram mortos naquele dia em choques em todo o país. Alguns islâmicos tinham previsto ou ameaçado com violência em represália pela deposição de Morsi e a repressão.

Mas ainda não há provas de que a Irmandade Muçulmana tenha planejado violência de modo sistemático ou que os protestos com ocupações tenham representado uma ameaça a outros civis. E os críticos da repressão letal dizem que ela foi desproporcional, não importa quem tenha disparado o primeiro tiro.

Mesmo assim, a mensagem vinda do governo e da mídia egípcios no fim de semana foi que os egípcios estão fortemente ressentidos com a imprensa ocidental porque ela é "enviesada em favor da Irmandade Muçulmana", disse o governo em comunicado impresso resumindo as diferentes coletivas de imprensa.

Mais de 600 pessoas podem ter sido mortas na operação que dispersou a ocupação islâmica. Mas, em vista da violência da Irmandade Muçulmana, Mustafa Hegazy, porta-voz do novo governo, disse em entrevista coletiva à imprensa no sábado que as forças de segurança agiram "com autocontrole enorme".

Tradução de Clara Allain


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