Folha de S. Paulo


Aguardente ícone da Revolução Comunista torna-se símbolo de ostentação

Exalado por centenas de destilarias locais, o odor inconfundível do Maotai, considerado o aguardente nacional da China, enche o ar da cidade que lhe dá o nome, na montanhosa província de Guizhou, sul do país.

É o cheiro do poder.

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Dos tempos em que revolucionários do Exército Vermelho usavam a bebida para desinfetar ferimentos e levantar o moral, até o atual status de produto de luxo, o Maotai é a versão etílica das transformações pelas quais a China passou no último século.

Nenhuma marca chinesa é tão associada à história moderna do país e a suas contradições como esta bebida fermentada à base de sorgo.

Na histórica visita do ex-presidente dos EUA Richard Nixon à China de Mao Tse-tung, em 1972, banquetes regados a Maotai ajudaram a selar a aproximação entre os dois países.

Quatro décadas depois, a tradição foi mantida pelo presidente chinês, Xi Jinping, que em sua recente visita aos EUA ergueu um brinde ao colega Barack Obama.

A gigantesca destilaria estatal, que ocupa dois terços da área de Maotai, dá a dimensão que a bebida ocupa como monumento nacional. É quase uma cidade dentro da cidade, com jornal e canal de TV próprios, hotel para visitas ilustres e um time de futebol que está entre os melhores do país.

8.ago.2012//Reuters
Mercado exibe em sua prateleira garrafas de maotai, na província chinesa de Liaoning
Mercado exibe em sua prateleira garrafas de maotai, na província chinesa de Liaoning

O prestígio e benefícios concedidos aos funcionários --entre eles seis garrafas anuais do precioso líquido--, tornam um emprego na fábrica alvo de cobiça.

O salário médio dos 20 mil funcionários, 8.000 yuans (R$ 2.800), é quatro vezes a média da população local.

Diante do prédio que abriga a administração da destilaria, há uma enorme estátua dourada do comandante revolucionário e ex-premiê Chou Enlai, com os dizeres: "pai do vinho nacional".

Registros históricos mostram que a bebida é produzida na região há cerca de 2.000 anos.

Suas credenciais revolucionárias foram conquistadas a partir de 1935, quando soldados do Exército Vermelho buscaram em Maotai um refúgio do cerco dos inimigos nacionalistas.

Mais tarde, Chou Enlai eternizaria a mística do aguardente ao dizer que o sucesso da retirada comunista, conhecida como a Grande Marcha, ocorreu em parte graças ao Maotai.

Após a revolução comunista, em homenagem a seu líder, o nome da cidade mudou de Moutai para Maotai.

MOEDA DE SUBORNO

A bebida virou símbolo de status e poder.

Nas listas anuais de produtos mais apreciadas pelos endinheirados, o Maotai disputa as primeiras colocações com marcas como Louis Vuitton e Rolex.

É um dos presentes mais apreciados pela elite política e uma das moedas correntes de suborno em transações de negócios que precisam de um empurrãozinho.

Não há banquete que se preze sem Maotai, nos quais dirigentes comunistas bajulam superiores com brindes em série e empresários fecham negócios virando num só gole inúmeros cálices do aguardente, um torpedo com 53% de teor alcoólico.

Os abstêmios sofrem: na etiqueta chinesa, recusar o brinde não é de bom tom.

O luxo não é para qualquer um. O choque de frugalidade imposto pela nova liderança comunista para conter os excessos da elite política até levou a uma queda recente nos preços, mas eles continuam astronômicos.

Uma garrafa de meio litro do Maotai original não sai por menos de 1.400 yuans (R$ 496). A mais cara, de 80 anos, chega a incríveis 290 mil yuans (R$ 47 mil).

A produção limitada e os preços elevados levaram à proliferação de falsificações e farta produção paralela em Maotai. "Faz bem para a alma e ajuda a circulação", diz o farmacêutico Zhan Xiaowen, 46, quarta geração de produtores da bebida.


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