Folha de S. Paulo


Análise: Para onde as manifestações levarão os países emergentes?

As conexões entre o Brasil e a atual Turquia remontam ao século XIX, quando esta era o núcleo do Império Otomano. A despeito de percursos históricos semelhantes, seus caminhos só se cruzaram, de fato, nos mandatos do presidente Lula e do primeiro-ministro Erdogan, a partir de 2003. Afirmando-se como potências emergentes num mundo em transformação, viram na cooperação uma possibilidade única de fundar uma "nova geopolítica global". Os paralelos eram óbvios: países em ascensão, desejosos por afirmar soberania econômica e política e comandados por líderes carismáticos, populares e munidos de um ativismo diplomático sem precedentes.

Os efeitos são visíveis, da ampliação do comércio exterior ao expressivo número de turistas brasileiros em terras turcas, beneficiados por voos diretos. Houve, além disso, o polêmico "Acordo de Teerã" (2010), responsável por colocar ambos os países nos holofotes da alta política. As transformações chegaram até ao imaginário coletivo brasileiro, sendo a Turquia tema de novela em horário nobre.

A parceria teria vindo para ficar?

A história de sucesso destas nações emergentes durou, sem sobressaltos, até o último mês. O que começou como uma manifestação contra a desapropriação de um parque no centro de Istambul transformou-se movimento de massas em dezenas de cidades, repleto de demandas contra o governo. Alguns dias mais tarde, impulsionadas pelo aumento das tarifas de transporte público, ondas de manifestações varreram o Brasil e levaram milhões de pessoas às ruas.

A eclosão dos movimentos dá-se exatamente num momento de recessão e revela, além das insatisfações imediatas, dilemas políticos e sociais profundos. Crescente autoritarismo e supressão de liberdades assolam um país que pleiteava seu ingresso na União Europeia. Corrupção, violência e ineficiência corroem a imagem da nação que sediará a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos. Nos dois casos, a reação governamental à insatisfação popular generalizada, além de mostrar pouco traquejo, foi marcada pela truculência policial. A diferença fundamental é que, enquanto no Brasil o alvo pareceu ser a classe política em geral, na Turquia a figura de Erdogan canalizou grande parte das insatisfações.

É cedo para contabilizar as perdas de parte a parte. De todo modo, pode-se dizer que o "gênio saiu da garrafa", gerando desconfiança de investidores estrangeiros, afugentando turistas e colocando em questão ambos os modelos democráticos. Daqui para frente, resta saber como as lideranças políticas assimilarão as contestações recentes. Os partidos governistas, há uma década no poder, precisam reinventar-se para manter sua posição, sob o risco de derrotas cruciais no curto prazo, entendendo-se que, para potências emergentes como Brasil e Turquia, a reputação é um bem precioso.

MONIQUE SOCHACZEWSKI GOLDFELD e GUILHERME CASARÕES são especialistas nas relações entre Brasil e Oriente Médio e lecionam na Fundação Getulio Vargas


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