Folha de S. Paulo


Reunião clandestina deu origem a reportagem sobre espionagem dos EUA

A fonte instruiu seus contatos na mídia a irem a Hong Kong, e a um canto pouco frequentado de determinado hotel onde deveriam perguntar --em voz bem alta-- sobre como chegar a outra porção do hotel. Se tudo parecesse certo, a fonte passaria por eles carregando nas mãos um cubo mágico.

Assim, três pessoas --Glenn Greenwald, jornalista especializado em liberdades civis que começou recentemente a trabalhar para o "Guardian"; a documentarista Laura Poitras, cuja especialidade é a vigilância; e Ewen MacAskill, repórter do "Guardian"-- viajaram de Nova York a Hong Kong cerca de 12 dias atrás. Seguiram as instruções. Apareceu um jovem carregando nas mãos um cubo mágico.

O jovem era Edward Snowden, que parecia ainda mais moço que seus 29 anos --e, como recordou Greenwald em entrevista concedida segunda-feira em Hong Kong, a juventude da fonte o espantou, porque, dados os programas sigilosos de vigilância a que o homem tinha acesso, o repórter esperava alguém bem mais experiente. Snowden já entregou aos jornalistas arquivos contendo "milhares" de documentos, de acordo com Greenwald, "dezenas" dos quais mereceriam espaço nos noticiários.

A capacidade de Snowden de escavar bem fundo nos arquivos do aparelho de segurança nacional dos Estados Unidos, e emergir carregando alguns de seus segredos mais bem guardados, é, em parte, uma história da era pós- 11 de setembro, quando a expansão no aparato de segurança do governo e os complexos sistemas de computação colocados em uso deram imenso poder a especialistas em redes dotados de fortes conhecimentos técnicos.

Embora alguns legisladores em Washington definam Snowden como traidor, ele se descreve como alguém em busca da verdade. Como o soldado Bradley Manning e Daniel Ellsberg, que ele diz admirar por revelar grandes segredos do governo, Snowden explicou suas ações em uma entrevista ao "Guardian" afirmando que o povo dos Estados Unidos tinha o direito de conhecer os abusos governamentais que haviam sido escondidos das pessoas.

Ele se retrata como alguém que selecionou cuidadosamente que material revelar, buscando evitar críticas de irresponsabilidade como as que surgiram contra Manning. Manning, que admitiu ter entregue centenas de milhares de documentos confidenciais mais tarde publicados pelo WikiLeaks, está enfrentando uma corte marcial na qual pode ser sentenciado a prisão perpétua. "Ele não mostra qualquer arrependimento, de qualquer espécie, e não mostra nenhum sinal de que esteja preocupado com o que fez, ou deseje voltar atrás", disse Greenwald sobre Snowden. "Ele está muito convicto de que fez a coisa certa". O repórter acrescenta que "ele não está vivendo uma ilusão - seu comportamento é completamente racional. Compreende perfeitamente que a maior probabilidade é de que termine como Bradley Manning, ou até pior. Mas mostra tranquilidade".

Não está claro como Snowden extraiu os documentos secretos, e faltam detalhes ao retrato de sua transformação de prestador confiável de serviços à Agência Nacional de Segurança (NSA) a informante responsável por vazamentos.

No ano passado, Snowden doou dinheiro à campanha presidencial de Ron Paul, pré-candidato republicano que há muito critica a extensão dos poderes do governo. Pessoas que conheceram Snowden na adolescência dizem que ele sempre foi fascinado por computadores. Joyce Kinsey, que vivia no apartamento em frente ao dele em Maryland, uma década atrás, diz que era comum vê-lo pela janela trabalhando no computador madrugada adentro.

"Ele estava sempre em seu computador - sempre", ela conta. "Era um rapaz quieto, muito quieto".

Snowden saltou de emprego em emprego, tanto no governo quanto como prestador terceirizado de serviços para a Agência Central de Inteligência (CIA) na Suíça e para a NSA no Japão, Maryland e Havaí, de acordo com seu relato. Por fim, trabalhando com um salário anual de quase US$ 200 mil como administrador de sistemas de computador em instalações sigilosas, ele ganhou acesso a imensos volumes de informações secretas.

Na entrevista em vídeo conduzida por Greenwald e gravada por Poitras, Snowden recorda ter visto coisas "perturbadoras" em "base frequente", e feito perguntas sobre o que via como abusos, para descobrir que esses casos não incomodavam pessoa alguma. Com o tempo, disse, decidiu que sua vida confortável estava ajudando a criar "uma arquitetura de opressão".

Snowden disse ao "Guardian" que foi durante seu período em Genebra, trabalhando como técnico em computação para a CIA, que ele começou a pensar sobre revelar segredos do governo. Mas afirmou que decidiu esperar, em parte porque acreditava que a eleição do senador Barack Obama como presidente, em 2008, pudesse reverter o crescimento do Estado de vigilância.

Mas o fato de que Obama tenha adotado muitas das políticas de combate ao terrorismo desenvolvidas pelo governo Bush o "endureceu", e Snowden disse ao "Guardian" que havia decidido que não devia esperar pela ação de terceiros. "Eu procurei líderes, mas compreendi que liderança é ser o primeiro a agir", disse.

John Schindler, ex-agente de contrainteligência da NSA e hoje professor na Escola de Guerra Naval dos Estados Unidos, disse que no mundo posterior ao 11 de setembro, "administradores de sistemas" têm acesso a enormes volumes de informações, o que pode representar risco de segurança.

"Eles podem representar uma lacuna crucial de segurança, porque veem tudo", disse. "São o que os codificadores de mensagem eram, no século 20. Se um administrador inteligente de sistemas se tornar um renegado, haverá problemas".

TRADUÇÃO DE PAULO MIGLIACCI


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