Folha de S. Paulo


Brasileiros levam berimbau e tambor a crianças do Haiti

Tambor, berimbau, futebol, cinema, oficinas de artesanato e olhos brilhando. Num país com poucas opções de lazer como o Haiti, é fácil imaginar a atração que qualquer atividade recreativa exerce sobre crianças e jovens.

Os relatos dos brasileiros Aíla Machado e Flávio Saudade, coordenadores de projeto de dança e de capoeira, respectivamente, da ONG Viva Rio no Haiti, são muito parecidos: bastou ouvirem as músicas para os primeiros interessados surgirem.

"A criança daqui não têm chance de se expressar, e a capoeira oferece isso", relata o mestre Saudade, responsável pelo projeto Gingando pela Paz no país desde o final de 2008. No primeiro ano, 150 crianças foram formadas. No terceiro, 535. Hoje os cerca de 200 alunos regulares são divididos em grupos por faixa etária (de 7 a 10 anos, de 11 a 15 anos e maiores de 15 anos).

Paula Lago/Folhapress
Grupo de dança Aochan Créole durante ensaio no Kay Nou, espaço do Viva Rio no bairro de Bel Air, em Porto Príncipe (Haiti)
Grupo de dança Aochan Créole durante ensaio no Kay Nou, espaço do Viva Rio no bairro de Bel Air, em Porto Príncipe (Haiti)

O Gingando pela Paz, que já existia no Rio, foi implantado no bairro de Bel-Air, em Porto Príncipe, com o propósito de atender principalmente as crianças-soldado, que eram recrutadas por grupos criminosos para auxiliar até mesmo em confrontos armados.

"No começo, tínhamos muitos problemas, eles brigavam todos os dias. Mas conseguimos transformar isso, as crianças perceberam que a aula de capoeira era um lugar seguro. Hoje, alguns dos primeiros 15 alunos se tornaram assistentes", diz Saudade.

Jean Marc Rodney, 26, é um desses egressos da primeira turma, que entrou no projeto por ter contato com crianças-soldado. Atuava, explica, na "parte política" do grupo. Hoje é conhecido como Corsário, apelido que ganhou no projeto, e dá aulas para crianças e adolescentes de 11 a 15 anos.

"A capoeira trouxe alegria para a minha vida. Hoje sou respeitado na minha comunidade. As pessoas falam que quem mora em Bel Air é bandido, mas eu mostrei que não é isso, que a gente pode mudar de vida. Já apareci até na TV numa apresentação!"

DANÇA

Aíla, pesquisadora de danças tradicionais, toca o projeto Aochan Créole, que atende 300 pessoas desde os três anos até a terceira idade desde 2010. "O haitiano é muito musical, muito dançante. Tocou o tambor, começa a vir um monte de gente", diz ela. "Logo após o terremoto, a dança era uma maneira de ter as crianças num espaço seguro, fazendo uma atividade construtiva, em que podíamos trabalhar a autoestima delas."

Os resultados podem ser vistos além do Haiti: o grupo já participou de concursos de dança na República Dominicana e se apresentou no Brasil, no ano passado.

Paula Lago/Folhapress
Meninos jogam bola em praça de Cité Soleil, em Porto Príncipe (Haiti), durante ação cívico-social organizada por militares brasileiros
Meninos jogam bola em praça de Cité Soleil, em Porto Príncipe (Haiti), durante ação cívico-social organizada por militares brasileiros

CINEMA

Não são apenas os brasileiros que trabalham em ONGs que oferecem alternativas de lazer em comunidades carentes --membros da Minustah (missão da ONU no país) e religiosos também desenvolvem esse tipo de atividade.

Os militares, uma vez por semana, se revezam nas ações cívico-sociais, em que deixam de lado as patrulhas para brincar com as crianças, distribuir água potável, oferecer atendimento médico e dentário, fazer apresentação de capoeira e disputadas sessões de cinema para as comunidades carentes.

No campo de deslocados de Corail Cesselesse, na cidade de Croix-des-Bouquets, as religiosas que participam do Projeto Missionário de Solidariedade entre as Igrejas do Brasil e do Haiti desenvolvem atividades ligadas à economia solidária e de geração de renda.

A população beneficiada ainda é pequena --80 famílias, das cerca de 2.900 que moram no campo, mas não faltam ideias: brinquedoteca, pufes feitos a partir de latas de leite e que vão servir de cama, bijuterias de garrafas pet e cozinhas comunitárias são alguns exemplos do que tem sido feito.

Há dois anos e oito meses no país, a irmã Maria Marcelina Xavier, psicopedagoga, atende famílias num posto médico e diz que, três anos depois, o trauma do terremoto não foi superado. "A maioria não fala sobre o que passou no sismo. Eles mudam de assunto ou se calam. O sofrimento ainda está muito presente."


Endereço da página: