Folha de S. Paulo


Lobistas obtêm vantagens a alguns países na reforma imigratória dos EUA

O governo da Coreia do Sul contratou um antigo analista da CIA (agência de inteligência americana), dois veteranos da Casa Branca e uma equipe de ex-assessores do Congresso para ajudar a garantir a presença de alguns parágrafos de texto no gigantesco projeto de lei da reforma da imigração dos Estados Unidos.

O governo da Irlanda, durante as festividades do Dia de São Patrício, apelou diretamente ao presidente Barack Obama e a líderes do Congresso por tratamento especial. E o governo da Polônia apelou ao vice-presidente Joe Biden e a líderes do Congresso em seu favor, um apelo repetido em uma festa na embaixada do país uma semana atrás, durante a qual foram servidos três tipos de presunto polonês e pirogi.

Esses e outros países conseguiram introduzir cláusulas especiais no projeto de reforma da imigração, um texto de 867 páginas que está em debate no Congresso, para conferir aos seus cidadãos benefícios não conferidos à maioria dos demais estrangeiros.

Irlanda e Coreia do Sul conseguiram medidas que reservam para seus cidadãos um número fixo dos procuradíssimos vistos especiais para trabalhadores convidados interessados em viver nos Estados Unidos. A Polônia obteve termos que lhe permitem ingressar na lista de nações cujos cidadãos podem visitar os Estados Unidos como turistas sem vistos prévios.

E os canadenses pressionaram com sucesso por uma alteração que permitiria aos seus cidadãos com idade de 55 anos ou mais e que não estejam empregados permanecer nos Estados Unidos por até 240 dias ao ano sem vistos, ante o máximo atual de 182 dias.

A Coreia do Sul tem quatro escritórios de lobby envolvidos na campanha, e paga a eles honorários que chegarão a US$ 1,7 milhão este ano, de acordo com relatórios obrigatórios sobre essas práticas que suas autoridades tiveram de submeter ao governo norte-americano. Outros países optaram por confiar em seus embaixadores e pessoal diplomático para a campanha, o que significa que não existe maneira de rastrear o quanto foi gasto nesses esforços.

Essas operações já começam a atrair críticas, especialmente da parte daqueles que se preocupam por algumas das cláusulas --somadas à elevação geral no número de vistos que a reforma da imigração prevê - representarem um risco de influxo de estrangeiros em número suficiente para prejudicar os trabalhadores norte-americanos.

"Isso pode resultar em uma espécie de política paralela de imigração", diz Ronil Hira, professor no Instituto de Tecnologia de Rochester, que estuda o sistema de imigração. "Todos os países vão tentar negociar vantagens especiais".

De fato, há legisladores que já estão pressionando para conceder benefícios especiais a outras nações, entre as quais o Tibete, Hong Kong e diversas regiões africanas.

Os defensores das medidas dizem que elas servem aos interesses dos Estados Unidos. Tornar menos severos os requisitos para vistos, por exemplo, poderia representar centenas de milhares de turistas adicionais a cada ano, com gastos de bilhões de dólares nos Estados Unidos, dizem os proponentes.

O senador Charles Schumer, democrata de Nova York e parcialmente responsável pela inserção de cláusulas que beneficiam a Polônia, Canadá e Irlanda, defende esses benefícios. "Cada uma dessas cláusulas faz sentido individualmente, por seus méritos", disse um porta-voz do senador. "Todas elas resolvem pontos de tratamento desigual na lei de imigração existente".

Os benefícios especiais a alguns países não atraíram grande interesse, mas o senador Charles Grassley, republicano do Iowa, e seus assessores estão questionando algumas delas, alegando que os norte-americanos merecem compreender completamente o que o imenso pacote de reforma da imigração contém. "Planejo fazer muitas perguntas durante o processo", disse Grassley durante uma reunião do Comitê Judiciário do Senado na quinta-feira.

Alguns diplomatas que trabalharam em apoio aos benefícios cuidadosamente desenvolvidos esperavam evitar esse tipo de atenção. "Se tivéssemos conseguido ficar fora do radar, preferiríamos", disse um importante funcionário de uma embaixada em Washington, que pediu que sua identidade não fosse revelada.

A terminologia adotada no pacote de reforma da imigração, criado por um grupo de trabalho bipartidário de oito senadores, se aplica de maneira equitativa aos cidadãos de qualquer país estrangeiro. As medidas propõem segurança mais rigorosa nas fronteiras e um processo que permitiria a naturalização de milhões de imigrantes ilegais já radicados nos Estados Unidos.

Também define uma elevação no número de vistos concedidos a trabalhadores de alta capacitação, dos atuais 65 mil anuais para 110 mil, e facilita o caminho de imigrantes já radicados no país para adquirir vistos de residência, os chamados green cards. Diante de apoio incerto no Senado e de oposição ferrenha na Câmara, o destino do projeto é difícil de prever.

Mas já que acesso aos Estados Unidos é uma presa cobiçada em boa parte do mundo, a pressão por favores especiais vem sendo intensa, de acordo com os registros do Congresso e do Departamento da Justiça.

Um grupo de norte-americanos de ascendência irlandesa, trabalhando em cooperação com a embaixada da Irlanda, contratou o ex-deputado federal Bruce Morrison, democrata do Connecticut, para ajudar a defender sua causa, argumentando que mudanças adotadas décadas atrás nas leis de imigração haviam criado uma barreira injusta ao acesso de cidadãos irlandeses aos Estados Unidos.

Em 1990, Morrison propôs uma cláusula, desde então conhecida como "Visto Morrison", que conferia preferência especial aos cidadãos da Irlanda e de um pequeno grupo de outras nações. A proposta atual permitiria 10,5 mil vistos anuais para cidadãos irlandeses com educação no mínimo secundária, uma oportunidade incomum já que esse tipo de visto em geral é reservado a estrangeiros definidos como "altamente capacitados".

O primeiro-ministro irlandês Enda Kenny participou do esforço, defendendo a ideia junto ao presidente Obama durante a festa de São Patrício. em Washington.

Lobistas trabalhando para a Coreia do Sul, entre os quais Brian Smith, assessor da Casa Branca no governo de Bill Clinton; Scott Parven, ex-assessor do Senado; Kirsten Chadwick, assessora da Casa Branca no governo Bush; e Jonathan Wakely, ex-analista político da CIA --fizeram dezenas de telefonemas e visitas ao Congresso nos últimos meses a fim de pressionar por uma forma especial de "visto profissional" para os cidadãos do país, concentrando suas atenções em figuras importantes dos comitês judiciários da Câmara e Senado, de acordo com registros do Departamento da Justiça.

Os lobistas ou comitês de ação política operados por seus escritórios também fizeram doações de campanha a legisladores que apoiam sua causa, em alguns casos apenas semanas antes que as cláusulas de benefício fossem acrescentadas ao texto, mostram documentos de financiamento de campanha. Autoridades estrangeiras são proibidas por lei de contribuir para campanhas políticas nos Estados Unidos.

A presidente Park Geun-hye, da Coreia do Sul, em sua primeira visita oficial a Washington, na semana passada, pressionou Obama e os legisladores a preservar a cláusula do pacote de imigração que reserva pelo menos cinco mil vistos especiais de trabalho ao ano para os sul-coreanos, ou pela aprovação de um projeto de lei separado ainda mais generoso, apresentado no mês passado, que poderia criar 15 mil desses vistos ao ano.

O governo sul-coreano afirmou que a cláusula é um complemento necessário ao acordo de livre comércio entre os dois países ratificado por ambos em 2011, para que trabalhadores altamente capacitados possam se transferir livremente de um a outro. A Austrália obteve benefício semelhante depois de assinar um acordo de livre comércio com os Estados Unidos em 2005.

"Se o projeto de lei sobre cotas para os profissionais sul-coreanos na distribuição de vistos for aprovado pelo Congresso, os dois países se beneficiarão, pois isso ajudaria a criar muito mais empregos", disse Park em discurso ao Congresso na quarta-feira. Ela além disso solicitou apoio a empresas norte-americanas, em um almoço oferecido pela Câmara de Comércio dos Estados Unidos.

O senador Jeff Flake, republicano do Arizona, vem sendo o principal defensor dos benefícios aos sul-coreanos, no Senado, e o deputado Peter Roskam, republicano do Illinois, faz o mesmo papel na Câmara. "Isso permite que o acordo de livre comércio floresça e atinja seu potencial", disse Roskam, que foi posicionado ao lado de Park em um jantar oferecido pela embaixada sul-coreana em Washington na semana passada.

Os poloneses defenderam seu caso na residência do embaixador Ryszard Schnepf, terça-feira, onde centenas de diplomatas, militares e importantes norte-americanos de ascendência polonesa se uniram a pelo menos seis congressistas e ao convidado de honra, o vice-presidente Biden. (Ele brincou dizendo que em seu Estado natal, o Delaware, muita gente o chamava de "Joe Bidenski".)

A Polônia quer que os Estados Unidos reformulem as regras que permitem que países estrangeiros solicitem dispensa do sistema de vistos obrigatórios, o que permitiria que seus turistas visitassem os Estados Unidos sem passar por uma entrevista formal em uma embaixada norte-americana no exterior.

A Polônia não conseguiu qualificação até o momento porque muitos de seus cidadãos terminam rejeitados ao solicitar vistos - um indicador de que poderiam tentar o visto de modo fraudulento a fim de se radicarem ilegalmente nos Estados Unidos.

O esforço para revisar as regras conta com o apoio da Casa Branca e de grupos que promovem o turismo nos Estados Unidos. A cláusula também poderia beneficiar 10 outros países, entre os quais Argentina, Brasil e Israel.

Mas Jess Ford, que estudava questões de segurança nas fronteiras para o Serviço de Auditoria do Governo (GAO) até 2011, disse que a mudança pode criar uma lacuna que deixaria os Estados Unidos vulneráveis a uma alta na imigração ilegal, ao menos até que o país crie um sistema, postergado inúmeras vezes, para monitorar a saída, e não só a entrada, dos visitantes.

"Assim que alguém entra no país como turista, não há como saber seu paradeiro", disse Ford em entrevista.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


Endereço da página: