Folha de S. Paulo


Análise: Selvageria da Síria vai dificultar reconciliação

Soldados sírios esfaqueiam lentamente um prisioneiro, e o matam com dezenas de punhaladas nas costas. Um comandante rebelde crava os dentes em um órgão arrancado do corpo de um combatente inimigo. Um menino pequeno serra a cabeça de um prisioneiro. Um soldado mutila a genitália de um cadáver.

Rebeldes sírios prometem castigar homem que mutilou soldado

São imagens do conflito sírio, a primeira guerra na qual a prevalência dos celulares equipados com câmera e a facilidade de acesso à Internet permitiram que centenas de crimes hediondos fossem veiculados na mídia, difundindo o ódio e o medo.

Essas imagens estão definindo uma guerra que se espalha da Síria para as nações vizinhas, e fazem da reconciliação uma perspectiva cada vez mais remota.

A brutalidade vem sendo usada como ferramenta desde que começou a revolta, dois anos atrás, e emergiram vídeos de soldados do governo torturando manifestantes pela democracia. Em resposta à campanha repressiva, a oposição se sublevou e agora combatentes de lado a lado se filmam cometendo atrocidades.

As imagens repulsivas não são gravadas de maneira clandestina, mas com orgulho da parte dos agressores, que muitas vezes falam para a câmera.

O comandante rebelde Abu Sakkar, conhecido de muitos jornalistas e reverenciado por muitos rebeldes, foi mostrado em um vídeo no domingo cortando órgãos de um soldado morto e falando à câmera, enquanto dilacerava a carne do inimigo.

"Juro por Deus que comeremos seus corações e seus fígados", ele declarou, em ameaça às forças do ditador Bashar al-Assad. Seus comandados aplaudiram.

Outra imagem vista online mostra um rebelde segurando a cabeça decepada de um homem, supostamente leal a Assad, por sobre uma churrasqueira, como se fosse cozinhá-la. O rebelde está sorrindo, em pose confiante, e segura a cabeça por uma mecha de cabelos.

Reinoud Leenders, professor associado no departamento de estudos de guerra do King's College, em Londres, disse que essas imagens brutais são usadas como ferramenta de guerra pelos dois lados.

"É a expressão máxima de desrespeito e desumanização do oponente", disse.

Diante da insurgência, afirmou, as forças de Assad vêm usando execuções em massa e tortura para erradicar os combatentes rebeldes que se escondem em meio aos civis.

"O regime tem dificuldade para identificar os membros da oposição, e por isso assusta os civis de uma área a fim de levá-los a expor os rebeldes", disse.

O governo sírio jamais reconheceu que quaisquer de seus comandados pratiquem brutalidades, e em lugar disso se refere às pessoas mortas pelos soldados como "terroristas" e às áreas capturadas por suas forças como "descontaminadas".

A guerra da Síria começou como levante popular contra a dinastia de Assad, que governa o país há quatro décadas usando a polícia secreta, intimidação e força bruta.

Mas a maioria muçulmana sunita é que lidera a revolta, e o apoio principal de Assad vem de sua seita alauita, derivada da seita xiita, o que resulta em lutas e ódios sectários.

RECONCILIAÇÃO

Estados Unidos e Rússia propuseram uma conferência de paz para tentar pôr fim à guerra, mas a selvageria de lado a lado significa que o improvável sucesso de um acordo de paz não deteria as atrocidades e os combates entre milícias cada vez mais inimigas.

Em sua natureza sectária e na inércia das grandes potências, o conflito da Síria se assemelha ao da Bósnia, dilacerada por rivalidades entre sérvios, croatas e bósnios em uma guerra travada entre 1992 e 1995 que ensinou ao mundo o termo "limpeza étnica" e registrou algumas das piores atrocidades praticadas na Europa desde a Segunda Guerra Mundial.

Quase 17 anos depois do fim da guerra, as feridas continuam abertas. Cadáveres ainda estão sendo escavados e um ciclo de negação e culpa prejudica os esforços para reconciliar as comunidades. A amargura é profunda e infecta a política, o que sufoca o desenvolvimento.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


Endereço da página:

Links no texto: