Folha de S. Paulo


Opinião: Grupos islâmicos em Mianmar correm risco de genocídio

Constantemente preocupados com a situação dos rohingyas, uma população muçulmana de Mianmar, considerada pelas Nações Unidas como uma das minorias mais perseguidas no mundo, alguns militantes de direitos humanos não hesitam em falar, há vários meses, em "genocídio".

Porém, é frequente o uso abusivo desse termo, por parte de quem quer chamar a atenção da opinião pública sobre a gravidade de uma situação. Cabe, portanto indagar se é realmente adequado esse termo no que se refere às violências sofridas pelos muçulmanos em Mianmar?

Segundo as próprias Nações Unidas, um genocídio caracteriza-se por atos cometidos com a intenção de erradicar totalmente ou parcialmente um grupo nacional, étnico, racial ou religioso.

Além disso, para o jurista Raphaël Lemkin que criou o termo, o genocídio tem que ser cometido "pelo Estado ou por grupos poderosos que contam com o apoio do Estado".

O historiador Raul Hilberg se interessou assim, em seu livro "A destruição dos judeus da Europa", no processo "organizado pelo Estado" que levou à destruição das populações judaicas na Europa.

Vale a pena sublinhar que essa "intenção" do genocídio fica geralmente escondida: a preparação e a perpetração são secretas e dissimuladas.

Por fim, os que organizam uma política de extermínio operam uma inversão: estigmatizam a população alvo, afirmando que a existência da maioria seria ameaçada por essa minoria que eles no entanto estão em capacidade de eliminar.

Agora, esse tipo de retórica encontra-se nas palavras do Wirathu, o monge budista que prega o ódio aos muçulmanos. Wirathu utiliza a figura clássica do inimigo interior : segundo ele, os muçulmanos estariam tomando paulatinamente o controle do pais, sem ninguém notar.

A suposta intolerância religiosa dessa minoria colocaria em perigo a nação birmanesa e a religião budista, vistas como consubstanciais uma com a outra.

O problema é que o Wirathu parece cada vez menos isolado: os militantes do movimento budista extremista 969, que apareceu recentemente, estão movendo uma campanha feroz contra os muçulmanos em todo o pais.

Essa campanha parece dar resultados num país onde as condições de vida são difíceis e onde a maioria da população considera que ser birmanês é ser budista. As violências que surgiram no centro do pais nos dias 20, 21 e 22 de março foram assim facilitadas por essa propaganda. Foram 40 pessoas mortas e 61 feridas, e mais de 800 edifícios destruídos.

Essas violências recentes foram precedidas por outras que surgiram em 2012 no Estado do Arakan, uma região no oeste do pais onde coabitam, dificilmente, rohingyas muçulmanos e rakhins budistas.

No dia 28 de maio de 2012, uma jovem rakhine foi estuprada e assassinada, e o crime foi imediatamente atribuído aos rohingyas. Daí a situação tem se radicalizado com grande velocidade: um ciclo de retaliações se desencadeou, provocando o deslocamento forçado de mais de 100.000 pessoas, a maioria delas rohingyas.

A ONG Human Rights Watch acusou o exército e a polícia birmanesa, assim como a NaSaKa (uma milícia usada de longa data pelos governos na fronteira do Estado do Arakan com o Bangladesh) de cometer graves violações de diretos humanos contra os rohingyas: homicídios, detenções massivas, estupros, obstrução à ajuda humanitária.

O relator especial das Nações Unidas sobre os direitos humanos na Birmânia, Tomás Ojea Quintana, questionou a atitude do governo birmanês nessa crise : afirmou que "fica para mim claro que existe dentro do governo um grupo de radicais que tentam aplicar essa política de discriminação contra os Rohingyas []. A minha preocupação é a seguinte: não sei qual é a posição do presidente Thein Sein sobre essa questão".

Porém, a primeira reação do presidente Thein Sein foi pedir ajuda à comunidade internacional para expulsar os rohingyas do país. Segundo Tomás Ojea Quintana, a crise no Arakan "não deveria ser uma oportunidade para excluir de maneira permanente uma comunidade julgada indesejável".

O genocídio, como já dissemos, se caracteriza pela intenção de acabar com uma população, por meio do planejamento das violências e da implicação do Estado nessa implementação.

A pergunta então é essa : será que o Wirathu e os extremistas do movimento 969 são os agentes do regime? A primeira vista, a hipótese segundo a qual o presidente Thein Sein seria diretamente envolvido não parece a mais provável, dados os riscos que ele já tomou para iniciar uma relativa abertura política do regime.

Porém, é verdade que um ramo do extremismo poderia desviar um possível ódio popular até um bode expiatório.

A implicação de uma facção do regime hostil ao reformismo de Thein Sein, frustrada por ter perdido uma grande parte do seu poder, é uma segunda hipótese. Seria o caso de criar uma situação de caos para justificar depois o retorno a uma ditadura absoluta.

Terceira e ultima hipótese: o fato de Wirathu e os militantes do movimento 969 não serem impedidos de pregar o ódio se explicaria pela ausência de simpatia do regime com os muçulmanos, e pela hesitação do governo em reprimir um movimento popular entre os Birmaneses.

Qualquer que seja a explicação, a má vontade do governo em lidar com os extremistas é preocupante : isso pode somente encorajá-los à continuar se radicalizando. Podemos estremecer ao escutar um negociante budista de Rangoon, dizendo que no seu bairro todo mundo já ouviu as pregações do Wirathu e todo mundo gostou do monge que se define como o Bin Laden do Budismo.

As referências explícitas de alguns budistas extremistas à Adolf Hitler, e à ideia de uma "solução final" a ser aplicada aos muçulmanos na Birmânia não são coisas anódinas. Devem provocar reações firmes por parte da comunidade internacional.

Porque é fato que nenhuma autoridade birmanesa está por enquanto assumindo as suas responsabilidades diante dessa ascensão do extremismo : nem o governo, nem a Liga Nacional para a Democracia nem a própria laureada pelo prêmio Nobel Aung San Suu Kyi.

A "dama de Rangoon" até recusou se pronunciar publicamente sobre a necessária revisão da lei de 1982 que, ao excluir os rohingyas da cidadania, despojou eles de toda nacionalidade.

Em um comunicado do 24 de outubro de 2012, o seu partido até usou o termo de "bengali" para falar dos rohingyas, o que é justamente o termo usado para todos os que se recusam a considerá-los como cidadãos nacionais.

O genocídio dos muçulmanos na Birmânia não aconteceu ainda, é verdade. Porém, o caráter organizado dos ataques que eles vão sofrendo deve preocupar-nos intensamente.

Os rohingyas deslocados pelas violências moram hoje em campos administrados pelo exército birmanês. Eles carecem de tudo e a crise humanitária atual deve, segundo a ONG Human Rights Watch, se transformar num desastre com a chegada das chuvas.

Mas para as autoridades, aparentemente não há condição de ajudar os Rohingyas a voltar para suas casas. Será que o pior está por vir?

FRÉDÉRIC DEBOMY é um analista e ativista francês. Foi presidente da ONG "Info Birmanie" dedicada à informação e à divulgação sobre a situação social e politica em Mianmar, e ao apoio aos grupos democráticos do país.


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