Folha de S. Paulo


Análise: Obama está certo em manter a cautela sobre Síria

As circunstâncias são conhecidas. Os Estados Unidos estão apontando para indícios de que um regime árabe despótico tenha usado armas de destruição em massa (WMD, na sigla em inglês).

Mas a cautela e as ressalvas da carta que o governo de Barack Obama enviou ao Congresso americano demonstram que não estamos vivendo uma repetição do fiasco iraquiano.

Em 2003, a Casa Branca de George W. Bush desconsiderou as incertezas e as reservas quanto à validade dos indícios disponíveis. Dez anos mais tarde, Washington está destacando as dúvidas que pendem sobre a questão, e fazendo da incerteza uma virtude.

Em uma declaração que parece fazer referência clara ao fiasco no Iraque, a carta de Obama aos senadores John McCain e Carl Levin afirma que "dado o que está em jogo e aquilo que aprendemos com nossas experiências recentes, avaliações de inteligência não bastam por si sós --apenas fatos críveis e corroborados que nos ofereçam algum grau de certeza serão usados para orientar nosso processo decisório, reforçando nossa liderança na comunidade internacional".

Em uma exceção notável ao que se costuma ver em pronunciamentos públicos sobre questões de inteligência, a carta entra em detalhes quanto aos motivos para duvidar, o maior dos quais se relaciona a dúvidas quanto à proveniência das amostras químicas.

Em outras palavras, não foram funcionários do governo americano que recolheram as amostras --sejam de solo, cabelos ou outros tecidos das vítimas-- e, por isso, não podem garantir sua proveniência; as autoridades norte-americanas podem apenas arrazoar que, se apenas o governo detinha estoques de sarin, um gás que afeta os nervos, na Síria, é "muito provável" que o governo tenha sido responsável por seu uso.

Mas esse arrazoado fica bem aquém do que seria requerido como prova. No caso do Iraque, boa parte dos falsos indícios quanto a WMDs vieram de desertores acolhidos por grupos de oposição que tinham interesse velado na queda de Saddam Hussein. Já na presente ocasião, a Casa Branca está reconhecendo explicitamente que "não há como confirmar como a exposição ocorreu, e sob que condições".

Outra frase notável na carta da Casa Branca se refere ao "grau variável de confiança" quanto aos indícios, entre os diversos componentes do aparelho de inteligência dos Estados Unidos. A variação se refere a desacordos entre as 16 diferentes agências que formam o aparelho de inteligência norte-americano; o governo Bush optou por ocultar essas diferenças, na corrida para a guerra em 2003.

Outra divergência deliberada quanto aos métodos da era Bush está em o governo ter afirmado que acatará o resultado da investigação da ONU quanto às acusações e contra-acusações relacionadas ao uso de armas químicas, o que vem acompanhado por ênfase em manter o consenso internacional quanto a decisões e ações. Tudo isso teria sido anátema para Bush, Dick Cheney e Donald Rumsfeld, que consideravam ceder autoridade a terceiros como uma diluição da soberania norte-americana.

A cautela não é explicada apenas pela incerteza inerente à análise de provas forenses fornecidas por terceiros, e sujeitas a perda gradativa de qualidade a cada dia. Também é reflexo do dilema do governo Obama quanto a ter declarado que o uso de armas químicas constituía uma "linha vermelha", mas sem deixar claro o que faria caso essa linha fosse cruzada.

Bombardear os arsenais químicos de Assad acarreta o risco de dispersar agentes por ampla área e causar uma catástrofe humanitária. Suspeita-se que os estoques de armas químicas sírias sejam tão grandes que seria impossível transportá-los, e que se forças especiais fossem enviadas para capturá-los, logo se tornariam alvo não só do governo mas dos grupos jihadistas que hoje o combatem.

Os Estados Unidos poderiam alternativamente conduzir ataques punitivos com o objetivo de decapitar ou ao menos enfraquecer o regime, mas isso os envolveria em uma guerra aberta que até o momento vêm tentando evitar, e poderia envolver combates diretos com assessores militares russos.

No entanto, o tabu criado quanto ao uso de armas químicas desde que Saddam Hussein as utilizou em um ataque contra seu próprio povo em Halabja, em 1988, é talvez uma das grandes realizações da diplomacia internacional nos últimos 25 anos. Permitir que armas químicas voltem a ser usadas sem uma resposta internacional decidida colocaria esses avanços em risco.

Não há escolhas fáceis ou caminho claro. O Iraque mostrou o que não fazer, na ausência de provas. Mas não oferece lições quanto ao que fazer caso as provas terminem por se tornar esmagadoras.

Tradução de PAULO MIGLIACCI


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