Folha de S. Paulo


Cirurgiões salvam vidas, se não pernas, após atentados em Boston

Tantos pacientes chegaram ao mesmo tempo, apresentando variações das mesmas lesões escabrosas. Ossos e músculos despedaçados, pregos cravados fundo na carne. Foi preciso decidir muitas e muitas vezes, com pouco tempo para estudar os casos: esta perna deve ser amputada? E esta outra?

"Como cirurgiões ortopédicos, estamos acostumados a ver pacientes nesta situação, com membros esfacelados, mas não vemos 16 ao mesmo tempo e não recebemos pacientes feridos em explosões", afirmou Peter Burke, chefe de cirurgia de traumatologia no Boston Medical Center.

As consequências das bombas que explodiram na segunda-feira na maratona de Boston, matando pelo menos três pessoas e ferindo mais de 170, serão sentidas por muito tempo por qualquer pessoa envolvida no famoso evento esportivo da cidade.

No caso das vítimas, o legado físico pode ser especialmente cruel para um grupo envolvido na maratona: amputações e traumas graves dos membros inferiores.

"Antes de amputar a perna de uma pessoa, uma decisão que é muito difícil de ser tomada, geralmente chamamos dois cirurgiões para chegarem a uma decisão", comentou Tracey Dechert, cirurgiã de traumatologia no Boston Medical.

Os casos múltiplos de traumas nas pernas foram frutos de bombas que parecem ter causado mais dano num espaço de até 60 centímetros acima do chão. Num instante, médicos de hospitais em toda a cidade que se preparavam para atender os casos comuns relacionados a maratonas --desidratação ou hipotermia-- se viram enfrentando decisões de impacto profundo que podem mudar a vida de corredores e espectadores de todas as idades.

Algumas vítimas chegaram duas em cada ambulância, algumas delas apresentando enormes buracos em suas pernas, onde a pele, a gordura e os músculos tinham sido arrancados pelas bombas, ou com rolamentos de metal ou pregos das bombas entranhados na carne. Outros apresentavam artérias cortadas nas pernas ou fraturas múltiplas nos ossos de pernas e pés.

E pelo menos nove pacientes tinham pernas ou pés tão mutilados que precisaram ser amputados --dois no Boston Medical Center, três no hospital Beth Israel Deaconess e um no hospital Brigham and Women's.

Julie Dunbar, capelã no Beth Israel, disse que alguns dos profissionais médicos que atenderam os feridos enfrentaram "mais traumas do que a maioria chega a ver em toda sua vida profissional, mais tristeza, mais dor".

O médico de urgências Allan Panter, 57, de Gainesville, Geórgia, estava a dez metros de distância da explosão perto da linha de chegada, esperando por sua mulher, Theresa, que completaria sua 16ª maratona de Boston. Ele contou que, auxiliado por outras pessoas, aplicou torniquetes de gaze em várias vítimas.

Panter disse que os torniquetes, cujo uso foi desencorajado em certa época porque pensava-se que prejudicassem as lesões, estão sendo aprovados novamente e vêm sendo usados para tratar ferimentos provocados por artefatos explosivos nas guerras do Iraque e Afeganistão.

"Com os ferimentos em membros inferiores provocados por explosões, como andamos tendo no Oriente Médio, a vítima pode morrer de hemorragia", disse ele. Os torniquetes "podem salvar vidas. Não sei se ajudaram nesta situação, mas com certeza não fizeram mal a ninguém."

Pelo menos oito médicos e aparentemente 20 ou mais enfermeiros estavam presentes na tenda. Um homem com microfone estava postado no centro da tenda para coordenar o atendimento médico.

A partir do momento em que as vítimas foram levadas aos hospitais de Boston, os médicos tiveram que coordenar sua reação com cuidado. Cada um deles conta uma história sobre onde estavam quando as bombas explodiram e como correram para ajudar e como, em alguns casos, deixaram por pouco de tornar-se vítimas, eles próprios.

O médico Alok Gupta, que dirigiu a resposta cirúrgica no hospital Beth Israel, contou que frequentemente vai à linha de chegada da maratona para assistir à corrida. Mas este ano, estava tão cansado que foi tirar uma soneca.

Então ouviu helicópteros e sirenes de ambulâncias diante de sua casa, em Back Bay, perto da linha de chegada. Estava começando a se perguntar por que as sirenes não paravam e os helicópteros continuavam presentes, quando seu celular tocou.

"A ligação foi interrompida. Só ouvi as palavras 'feridos em massa' e 'precisamos de você'. Cirurgiões foram notificados, médicos de urgências foram chamados, profissionais de salas de cirurgia foram convocados, todo o mundo foi convocado."

Dez minutos mais tarde, os pacientes começaram a chegar. Cada um foi posto numa sala e avaliado. Médicos descreveram a situação como sendo de calma e eficiência.

Recorrendo a uma tática empregada pelas forças armadas no Iraque, os médicos do Beth Israel usaram canetas hidrográficas para anotar os sinais vitais e ferimentos dos pacientes em seus peitos, a uma distância segura dos ferimentos nas pernas, para prevenir a possibilidade de o prontuário médico de um paciente se perder durante a transferência para a sala de cirurgia ou a UTI, por exemplo.

Os pacientes que precisaram de cirurgias em muitos casos tiveram que ser submetidos a mais de uma cirurgia nos dias subsequentes. Os que sofreram ferimentos abertos enormes, que arrancaram pele e músculos, precisariam de cirurgia plástica, e os que sofreram ruptura de artérias precisariam de cirurgias de reparo vascular.

Tradução de CLARA ALLAIN


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