Folha de S. Paulo


Coluna: Sírios sonham com uma vida normal, sem balas e bombas

A bala atravessou sua cabeça. Ele morreu antes de os ecos do disparo terem acabado de reverberar nos muros de pedra da ruela estreita em Damasco. O pai e herói de Zeynab, meu primo, se foi. Seu corpo desabou ao lado de sua filha de quatro anos, que não ouviu o tiro porque é surda.

"Papai, papai, não vá embora. Ouça, por favor, por favor. Quero lhe contar dos sinais novos que aprendi hoje", disse a menina.

Zeynab não podia ouvir sua própria voz pequena e assustada. Sem saber como comunicar sua súplica na linguagem de sinais, segurou a mão inerte de seu pai e olhou fixamente para seu rosto ensanguentado. Não ouviu resposta. Tampouco ouviu o segundo tiro, que atravessou seu peito. Ela sobreviveu.

Aquela manhã de dezembro tinha sido como outra qualquer para Zeynab. Ela acordou antes de seus pais porque dormia bem à noite. Os tiros e as explosões nunca a acordavam nem lhe causavam pesadelos. A surdez lhe possibilitava um sono tranquilo, apesar de os combates entre o regime sírio e as forças rebeldes continuarem acirrados. Todas as manhãs a menina entrava no quarto dos pais na ponta dos pés e parava ao lado de seu pai. Ela sussurrava:

"Papai, papai,
amo você mais que todo o mundo.
Papai, papai,
nunca me deixe sozinha.
Papai, papai,
amo você mais que todo o mundo.
Papai, papai,
não faça de conta que está com sono."

Acordar com a voz de Zeynab enchia Abu Abbas de alegria. Seu afeto profundo pela filha provocava ciúmes na mãe de Zeynab, Um Abbas.

A família não se interessa por política. Como é o caso da maioria das famílias sírias, seus membros só queriam uma vida normal. Levavam seus filhos à escola, na esperança de que eles estivessem em segurança.

Abu Abbas trabalhava numa padaria. De tempos em tempos, quando sobrava dinheiro, eles comiam seu prato predileto, "farouj" (frango).

Os ocidentais discutem sobre islâmicos que estariam assumindo o controle na Síria, terroristas que estariam penetrando em todos os campos na Síria, a guerra sectária, a guerra étnica e a guerra religiosa.

Muitas famílias sírias não têm consciência dessas discussões "analíticas e eruditas". Apenas sonham com o tempo em que podiam comer, conversar e curtir a presença uns dos outros sem que a luta pelo poder marcasse suas vidas com explosões e tiros.

O comerciante Abo Hashem, do mesmo bairro, tinha poucos fregueses. Passava a maior parte do tempo sentado numa cadeira diante de sua loja, jogando gamão e fumando narguilé.

"O tipo de governo que vai comandar o país não nos interessa. Não ligamos para quem vai vencer ou perder", disse ele. "Só queremos uma vida normal."

Naquele dia, o pai de Zeynab se levantou. Abaixou seu rosto, e Zeynab beijou sua bochecha com força. Ela não conseguia ouvir as palavras do pai, mas, pelo movimento dos lábios e a luz nos olhos dele, entendeu que ele disse "behebak" (amo você).

Abu Abbas acompanhou Zeynab até o micro-ônibus que os levaria para a única escola de Damasco que ensina a linguagem de sinais. A escola foi aberta antes do levante e era o lugar favorito de sua filha.

Muitos viam a surdez de Zeynab como um fardo. Quem poderia querer se casar com ela no futuro? Desconhecendo tudo isso, Zeynab era a pessoa mais feliz do mundo. Com a ajuda da linguagem dos sinais, costumava dizer: "Amo minha vida".

Abu Abbas comentou certa vez: "É uma bênção que ela não possa ouvir todos os disparos, as explosões ou as histórias terríveis contadas nos jornais".

Ao meio-dia, como de costume, a eletricidade foi cortada. Quando o levante começou, também começou a escassez de água. Algumas famílias têm apenas cinco horas diárias de água e luz.

Pouco depois disso, Abu Abbas foi buscar Zeynab na escola. Quando um carro parou atrás deles, o fato chamou sua atenção imediatamente.

Abu Samer, dono de uma pequena quitanda nas proximidades, relatou: "Ele parou. Quando viu o carro, pegou a mão da filha e a escondeu atrás dele."

O regime sírio e a Mukhabarat, ou polícia secreta, são os únicos autorizados a andar em carros com janelas de vidro fumê.

Os dois homens que saltaram do carro avançaram para Abu Abbas sem hesitar.

Com a arma já engatilhada, um deles fez mira e, um instante depois, a bala penetrou na testa de Abu Abbas e espatifou seu crânio. Ele caiu de joelhos, ainda tentando esconder Zeynab. Ela abraçou o pai. Gritou, sem conseguir lembrar os sinais para usar. Outro tiro foi disparado.

Passaram-se semanas.

A família ainda não sabe ao certo por que isso aconteceu e, como muitas outras, não teve mais condições de permanecer no país. Arrasada e exausta, partiu para seus membros se tornarem refugiados perto da fronteira da Jordânia, onde estão milhares de outras pessoas e faltam barracas para todos. Só existe uma certeza para muitas crianças do lugar: elas sentem falta de poder cantar para seus pais.

Majid Rafizadeh é acadêmico iraniano-sírio e presidente do Conselho Americano Internacional sobre o Oriente Médio e os Muçulmanos, em Washington. Ele integra o conselho editorial da "Harvard International Review". Envie comentários para
intelligence@nytimes.com


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