Folha de S. Paulo


Análise: Pontífice pode extrair lições do passado da igreja no continente

A relação entre religião e política não é uma novidade. Sêneca alertava como ela era útil para os governantes. Muitas são as virtudes do novo papa: modos humildes de viver, compromisso com os pobres, caráter reservado etc. Sua suposta relação com a ditadura parecera ser, até agora, a sua principal mácula.

Para Jorge Bergoglio, agora Francisco, o pontificado chegou em um momento particular. Na Argentina, o julgamento de repressores e colaboradores é tema candente. É o país onde esse processo de reparação histórica foi mais a fundo, desnudando que os golpes de Estado e as ditaduras não tiveram só caráter militar, mas um componente civil indiscutível.

De todo modo, quando se fazem apreciações gerais, podemos cair em terríveis reducionismos. A conjuntura na qual as ditaduras se inserem era particularmente delicada. Foi o momento mais quente da Guerra Fria no nosso subcontinente, e a igreja, como ator muito mais relevante do que agora, não podia deixar de estar presente.

Mas tampouco podemos ver a participação da igreja como monolítica. No seu interior havia profundas divisões, que tensionavam ainda mais o "momentum" político.

Tínhamos, por um lado, a Teologia da Libertação, que tomava partido claro e penetrava nos setores populares a que a esquerda tradicional não chegava. Alarmados, outros grupos assumiam posição em defesa da ordem, ocidental e cristã, legitimando muitas vezes até o ilegítimo.

A grande maioria desconcertada, como sempre, ficou numa zona cinzenta, tratando de sobreviver no turbilhão que se desatava. Talvez aqui possa ser colocado o novo papa, como atestam inúmeras testemunhas, que ora o atacam, ora o defendem.

Os casos pontuais que tocam a Bergoglio são o do sequestro dos religiosos Francisco Jalics e Orlando Yorio e, de forma mais difusa, o acobertamento do roubo de Ana, neta de Alicia de la Cuadra, primeira presidente das Avós da Praça de Maio.

Por ora, os documentos não parecem conclusivos, dando lugar a múltiplas interpretações, que talvez nunca sejam esclarecidas de todo.

Hoje parece que o caminho era claro, mas no calor da hora a situação era muito diferente. A própria igreja, agora sim como um corpo, mudou seu comportamento, em alguns casos radicalmente.

Nos momentos iniciais, no Brasil, convocou gigantescas mobilizações em adesão ao regime. Na Argentina, a comunhão pública dos ditadores era o exemplo mais cabal.

Mas, pouco a pouco, as circunstâncias e os interesses os foram distanciando. No Chile, foi a Vicaría de la Solidaridad que tomou posições avançadas na defesa dos direitos humanos. Aqui, a CNBB assumiu a tarefa, embora de forma mais tíbia.

Nesse período, a igreja deu mártires como monsenhor Angelelli ou padre Mujica, numa lista extensa. Mas também muitos monstros, gerados num processo histórico que dilacerou sociedades inteiras. Longe de ser um passado morto, parece que eles estão mais vivos na Argentina de Bergoglio do que em outras partes que lhe toca guiar espiritualmente.

É indiscutível que a igreja atravessa um período em que suas debilidades estão mais em destaque que as suas virtudes. O novo papa pode obter ensinamentos desse passado. Além de argentino, ele é jesuíta e, como tal, tem a certeza de que se pode renascer das cinzas --e de que depois da fumaça preta sai, indefectivelmente, a branca.

HERNÁN RAMÍREZ, argentino, é historiador especialista em América Latina, professor da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (RS) e professor visitante da Universidade Nacional de Córdoba, na Argentina


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