Folha de S. Paulo


Novo bispo de Roma será um "ersatz"

Entre as centenas de telefonemas e e-mails que recebi, escolho um. "Não consigo acreditar. Estou tão angustiada e bronqueada que não sei o que fazer. Ele conseguiu o que queria. Estou vendo Orlando na sala de jantar de casa, uns anos atrás, dizendo: 'Ele quer ser papa'. É a pessoa indicada para encobrir a podridão. Ele é expert em encobrir. O meu telefone não para de tocar, Fito falou comigo chorando."

Quiz: Sabe tudo sobre o novo papa?

Quem assina é Graciela Yorio, a irmã do sacerdote Orlando Yorio, que denunciou Jorge Mario Bergoglio como responsável por seu sequestro e pelas torturas que sofreu durante cinco meses de 1976. O Fito que ligou é Adolfo Yorio, seu irmão. Ambos dedicaram muitos anos de suas vidas a dar prosseguimento às denúncias de Orlando, teólogo e sacerdote terceiro-mundista que morreu em 2000 sonhando um pesadelo que se fez realidade.

Três anos antes, seu íncubo fora designado arcebispo-coadjutor de Buenos Aires, o que prenunciava o resto.

Orlando Yorio não chegou a conhecer a declaração de Bergoglio diante do Tribunal Oral Federal 5. Ali, ele disse que só soube da existência de crianças roubadas depois de terminada a ditadura (1976-83). Mas o Tribunal Oral Federal 6, que julgou o plano sistemático de apropriação de filhos de presos-desaparecidos, recebeu documentos que indicam que já em 1979 Bergoglio estava a par e interveio em pelo menos um caso, por solicitação do superior geral, Pedro Arrupe.

Depois de escutar o relato dos familiares de Elena de la Cuadra, sequestrada em 1977, quando atravessava o quinto mês de gravidez, Bergoglio entregou uma carta ao bispo auxiliar de La Plata, Mario Picchi, pedindo que intercedesse junto ao governo militar.

Picchi constatou que Elena dera à luz uma menina, que foi dada de presente a outra família. "Ela está com um casal de bem e não tem volta", informou à família. Ao testemunhar por escrito no processo da ESMA (Escola de Mecânica da Armada, utilizada pelos militares como um dos principais centros de torturas e desaparecimentos em Buenos Aires) pelo sequestro de Yorio e do também jesuíta Francisco Jalics, Bergoglio disse que no arquivo episcopal não havia documentos sobre os presos-desaparecidos.

Mas quem lhe sucedeu, seu atual presidente, José Arancedo, enviou à juíza Martina Forns uma cópia do documento que publiquei no jornal "Página/12" sobre a reunião do ditador Jorge Videla com os bispos Raul Primatesta, Juan Aramburu e Vicente Zazpe, na qual conversaram com extraordinária franqueza sobre dizer ou não que os presos-desaparecidos tinham sido assassinados, pois Videla queria proteger os que os mataram.

Em seu clássico livro "Iglesia y Dictadura", Emilio Mignone o mencionou como paradigma dos "pastores que entregam suas ovelhas ao inimigo sem defendê-las nem resgatá-las".
Bergoglio me contou que em uma de suas primeiras missas como arcebispo viu Mignone e tentou se aproximar dele para dar explicações, mas o presidente fundador do CELS (Centro de Estudos Legais e Sociais), levantou a mão, indicando que não chegasse perto.

Não tenho certeza de que Bergoglio tenha sido eleito para encobrir a podridão que reduziu Joseph Ratzinger à impotência. As lutas internas da cúria romana seguem uma lógica tão inescrutável que os fatos mais obscuros podem ser atribuídos ao Espírito Santo, sejam as manobras financeiras para que o Banco do Vaticano fosse excluído do mercado internacional porque não cumpre as regras para controlar a lavagem de dinheiro, sejam as práticas pedófilas em quase todos os países do mundo, que Ratzinger encobriu no Santo Ofício e pelas quais pediu perdão como pontífice. Nem sequer me estranharia se, de pincel na mão e sapatos gastos, Bergoglio empreendesse uma cruzada moralizadora para caiar os sepulcros apostólicos.

O que tenho como certo, orem, é que o novo bispo de Roma será um "ersatz", essa palavra alemã a que nenhuma tradução faz as honras, um sucedâneo de menor qualidade, feito a água com farinha que as mães indigentes usam para enganar a fome dos filhos.

O teólogo brasileiro da libertação Leonardo Boff, excluído por Ratzinger do ensino e do sacerdócio, tinha a ilusão de que seria eleito o franciscano de origem irlandesa Sean O'Malley, encarregado da diocese de Boston, quebrada com tantas indenizações pagas a crianças abusadas por sacerdotes.

"Trata-se de uma pessoa muito vinculada aos pobres porque trabalhou por muito tempo na América Latina e no Caribe, sempre no meio dos pobres. É um sinal de que pode ser um papa diferente, um papa de nova tradição", escreveu o ex-sacerdote.

Na Cadeira Apostólica não se sentará um verdadeiro franciscano, mas um jesuíta que se fará chamar Francisco, feito o pobrezinho de Assis. Uma amiga argentina me escreve de Berlim, sobressaltada, que, para os alemães, que desconhecem a história dele, o novo papa é um terceiro-mundista. Confusão miúda.

Sua biografia é a de um populista conservador, como o foram Pio 12 e João Paulo 2º: inflexíveis em questões doutrinárias, mas com abertura para o mundo, sobretudo as massas despossuídas. Quando ele rezar sua primeira missa em uma rua do Trastevere ou na estação terminal de Roma e falar das pessoas exploradas e prostituídas pelos poderosos insensíveis que fecham o coração para Cristo; quando os jornalistas amigos contarem que andou de metrô ou de ônibus; quando os fiéis escutarem suas homilias recitadas com ademanes de ator e nas parábolas bíblicas coexistem com a fala franca do povo, haverá quem delire pela desejada renovação eclesiástica.

Nos três quinquênios em que esteve à frente da arquidiocese portenha, ele fez isso e muito mais. Mas, ao mesmo tempo, tentou unificar a posição contra o governo que em muitos anos adotou a política favorável a esses setores, e o acusou de brigão e confrontador porque, para fazê-lo, teve que lidar com aqueles poderosos fustigados no discurso.

Agora poderá fazê-lo em outra escala, o que não quer dizer que se esquecerá da Argentina. Se Pacelli recebeu o financiamento da Inteligência norte-americana para sustentar a democracia cristã e impedir a vitória comunista nas primeiras eleições do pós-Guerra, e se Wojtyla foi o aríete que abriu o primeiro buraco no muro europeu, o papa argentino poderá cumprir o mesmo papel em escala latino-americana.

Sua militância passada na Guarda de Ferro, o discurso populista que não esqueceu, com o qual poderia até adotar causas históricas como a das Malvinas, o habilitam para disputar a orientação desse processo, para interpelar os exploradores e predicar a tranquilidade aos explorados.

Texto originalmente publicado no jornal "Página/12"

Tradução PAULO WERNECK

HORACIO VERBITSKY é um dos fundadores do jornal argentino "Página/12". Ele é autor do livro "O Silêncio", investigação sobre o sequestro de dois padres jesuítas durante a última ditadura militar argentina (1976-1983)


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