Folha de S. Paulo


"Há um desejo de autenticidade na igreja", diz cardeal brasileiro

A escolha do papa Francisco revela uma busca pela autenticidade dentro da Igreja Católica, segundo o cardeal brasileiro d.João Braz de Aviz, ex-arcebispo de Brasília e único integrante brasileiro da cúpula da Cúria Romana ainda nomeada por Bento 16.

Nesta entrevista à Folha, d.Aviz elogia a escolha de um latino-americano, defende o diálogo com outras religiões e ateus e nega ter se envolvido numa discussão com d. Odilo Scherer durante uma reunião um dia antes do conclave, relatada pela imprensa italiana.

*

Qual é a mensagem da escolha do cardeal Jorge Mario Bergoglio e, depois, do nome Francisco?

Penso que há um desejo entre os católicos, e também dos bispos e dos cardeais, de uma autenticidade na igreja. Estamos percorrendo um pouco esse caminho, mas com problemas. Mas também um caminho de simplicidade, típico de são Francisco. É um homem que jogou tudo acreditando que Deus era seu pai. E que, entre as pessoas, não é nada mais do que um relacionamento de irmãos. É uma figura extraordinária, e ele quer se inspirar nessa figura. A gente vê que há muita coerência entre o que ele já fez e o que ele está anunciando.

E naturalmente pra nós, latino-americanos, é um fato inédito, de uma esperança muito grande: de repente, a igreja, com todos os cardeais, reconhecer a importância da igreja da América Latina.

O que a mim me alegra muito é que essa decisão veio amadurecendo devagar, não foi explosiva, foi crescendo. E isso me indica que também foi crescendo o sentido dessa candidatura no conclave. Então a esperança da gente é que a igreja sinta em todos os cantos qual é a direção que Francisco pode agora falar pra nós. Isso fica como uma espera e um sonho.

São Francisco também buscou reformar a igreja. Isso também pesou na escolha do nome?

Há tantas coisas que estão em andamento. Existe a afirmação de que a igreja é povo de Deus. O povo de Deus tem de dar valor a tudo aquilo que faz da gente verdadeiros irmãos e irmãs. Isso é um caminho que temos de percorrer muito ainda, há muita diferença dentro da igreja.

A gente não quer dizer que não há necessidade de padres, bispos, cardeais, que não há necessidade de religiosos, de consagrados, de monges. Mas a gente quer dizer que a primeira consciência que a gente tem de ter é que todo mundo é irmão, então aí entra tudo. Nós não chegamos a isso ainda, não é assim. Não é um sonho idealista, é uma proposta concreta de Jesus que ele viveu e que nós podemos viver. Acho que a nomeação de Francisco primeiro é justamente essa vontade de que isso seja verdade.

A gente pode pensar na questão ecumênica. A relação com as outras igrejas não é secundária, é uma relação essencial, nós temos de construir isso aí concretamente. Não se pode mais considerar o outro inimigo, sem valor nenhum. Não se pode dizer mais: "Ele não é católico, ele não presta."

O outro é alguém que segue Deus, que luta por Deus, terá outro nome esse Deus, outra tradição, mas é uma pessoa de grande valor.

A questão da pessoa sem fé, por exemplo. Às vezes, a gente fica julgando uma pessoa sem fé. Não é assim, não. Tem pessoas que realmente têm convicção de que a fé não é necessária. E como se relacionar com eles, vamos condenar?

Então essa reforma da mentalidade, nós temos uma grande esperança não só com Bento 16 e com outros papas também, mas acho que agora Francisco terá de fazer muito na questão do comportamento prático.

Há informações de que ele não gostava muito de vir à Roma...

Não, não, o que é verdade é que a formação dele foi mais lá. Mas isso acontece com muitos de nós.

Como é o seu contato com o papa Francisco?

Eu fiquei muito feliz porque, quando fui me apresentar a ele, ele disse: "Fui bispo de Brasília, sou Aviz". Ele falou: "Eu me lembro de você lá em Aparecida porque você passava a mão na cabeça das crianças na hora de entrar na missa."

A imprensa italiana noticiou que o senhor e o dom Odilo divergiram seriamente numa das reuniões pré-conclave. É verdade?

Eu? Que tenha tido um pega? Mas o pessoal sabe inventar as coisas. O d.Odilo é meu amigo quase de infância, quando éramos seminaristas! Pra eu brigar com ele, não sei o que eu preciso fazer, viu?

O senhor ficou muito assustado com a cobertura da imprensa?

Não, porque a gente sabe que vocês têm uma parte da informação, a outra, vocês não têm. Isso que vocês não têm, a gente também não tem, mas vai tentando encontrar.


Endereço da página: